Sabedoria libertadora de Jesus: e nós? Por Frei Gilvander Moreira[1]
Em contexto de deturpação da imagem
verdadeira de Jesus Cristo privatizado e domesticado por certos tipos de
movimentos religiosos (neo)pentecostais na linha da “teologia” da prosperidade,
melhor dizendo, ideologia da prosperidade, faz-se necessário e imprescindível
resgatarmos o Jesus histórico com sua sabedoria libertadora, o que poderá
inspirar nossa postura ética no rumo da superação das gravíssimas injustiças e
violências que campeiam no nosso país.
O que é sabedoria libertadora? É o
conhecimento e a práxis que libertam, com sabor de vida, não é intelectualismo
e nem erudição, muito menos tecnicismo. A sabedoria popular é sábia, mas,
muitas vezes, ambígua e, às vezes, contraditória e pode estar contaminada pela
ideologia dominante, que são ideias da elite, ideias particulares a partir do
lugar social de dominação que são trombeteadas aos quatro ventos como se fossem
ideias universais. Entretanto, são meios que carregam preconceitos,
discriminações e escamoteiam as verdadeiras causas das injustiças sociais
colocando os violentados como responsáveis últimos das violências que sofrem.
Jesus não nasceu sábio e pronto, mas, ao
longo da sua curta vida, se tornou um sábio libertador, aprendeu muito com
todos/as e com tudo. No ventre de Maria grávida de Jesus, Deus assume o humano.
Por ser “filho de mulher” (Gal 4,4), Jesus aprendeu que o divino transcende o
humano, mas está tão unido ao humano como “carne e unha”. Na carpintaria de
José operário, homem justo, Jesus tomou consciência de ser da classe
trabalhadora. Com Maria, sua mãe, e as mulheres da Galileia, Jesus aprendeu a
não ser machista e nem patriarcal. Por isso, mesmo em contexto patriarcal que proibia
homem entrar em casa onde só tivesse mulheres, Jesus entrou na casa de Marta e
Maria e acolheu Maria como discípula e ainda corrigiu com fraternidade Marta,
convidando-a a se desvencilhar das amarras do mundo privado e a participar como
Maria da vida pública (Cf. Lc 10,38-42).
Em uma Sinagoga da periferia, na
Galileia, Jesus aprendeu a ser porta-voz dos exilados e escravizados. Por isso,
ao anunciar seu projeto de missão pública, Jesus propôs libertação integral, o
que está descrito em Lc 4,16-21, inspirando-se nos servos sofredores da
história e nos discípulos do grande profeta Isaías (Is 61,1-2). Em uma pequena
e simples sinagoga, o jovem galileu, “movido pelo Espírito”, como toda pessoa
humana, proclamou seu projeto de libertação integral. Jesus aprendeu que na
missão libertadora se deve propor “ótima notícia para os pobres”, que é
libertação econômica; “libertar os presos”, que é libertação política;
“resgatar a visão” (Lc 4,18), que é libertação ideológica; “implantar o Ano da
Graça” (Lc 4,19), que é Jubileu Bíblico, que significa reorganização geral da
sociedade com devolução das terras para os seus antigos donos – os “ancestrais”
-, perdão geral de dívidas do povo, ou seja, conquista de uma Terra sem males,
uma sociedade do bem viver e conviver, em linguagem afrolatíndia de hoje.
Com o profeta João Batista, Jesus
aprendeu a necessidade de lutar pela superação das desigualdades
socioeconômicas. Com os zelotas, Jesus aprendeu que precisava combinar
solidariedade com luta para conquistar a emancipação política do povo. Com os
idosos, Jesus aprendeu a ler os sinais dos tempos. Assumindo a causa dos
empobrecidos, Jesus aprendeu a fazer análise da conjuntura de forma crítica e
criativa, o que está, por exemplo, em Lc 13,1-9, onde Jesus alerta para não
aceitar ingenuamente o que é noticiado pela mídia e nem pela ideologia
dominante.
Ao ver e sentir a exploração que o
imperialismo romano causava, Jesus denunciou o governador Herodes (“uma
raposa”, Lc 13,31-33), a tributação injusta (Lc 20,25), o aprisionamento em
massa e por esta sabedoria, Jesus foi condenado à pena de morte pelo Estado em
conluio com o sinédrio, poder religioso dominado por saduceus, que eram os
grandes proprietários de terra da época. Com a mulher cananeia (Mt 15,21-28, sirofenícia,
segundo Mc 7,24-30), Jesus se libertou do patriotismo e do “verde amarelismo”
que excluíam. Com os que eram considerados impuros e hereges, Jesus aprendeu a
ser subversivo. Por isso, apontou um samaritano como exemplo a ser seguido e “chutou
o pau da barraca” ao expulsar os vendilhões do templo, os que lucravam usando e
abusando do nome do Deus da vida. Com parte dos fariseus, Jesus aprendeu a
contar parábolas, linguagem que o povo entendia e ficava com os olhos brilhando
diante das descobertas desconcertantes e provocantes que Jesus suscitava com
suas metáforas exemplares. Convivendo com o povo superexplorado, Jesus aprendeu
que tinha que ser “pé no chão”, estar junto do povo, misturado, partilhando suas
dores e alegrias. Jesus aprendeu que não podia tolerar a privatização do
sistema de saúde nas mãos dos sacerdotes que cobravam para fazer ritos de
purificação, após expulsar a maioria do povo para fora da cidade, taxando-os de
impuros. Por isso, Jesus fazia os milagres gratuitamente em processos de solidariedade
libertadora. Convivendo com o povo simples e oprimido, Jesus aprendeu a
pedagogia da partilha dos pães (Cf. Jo 6,1-15; Mt 14,13-21; Mc 6,32-44; Lc
9,10-17) que desagua na abundância e envolve uma série de passos articulados e
interdependentes: 1) Jesus está no meio do povo faminto convivendo; 2) Vê a
realidade nua e crua a partir dos empobrecidos; 3) Comove-se com a dor do povo
sofrido; 4) Provoca a todos/as para buscar solução para o grave problema
social, fruto de injustiça social: a fome; 5) Discerne qual projeto pode ser o
caminho da superação da fome; 6) Exclui a postura de quem queria se esquivar da
responsabilidade diante do problema - “despede
as multidões para elas irem ...” - e o projeto de mercado apresentado por Filipe:
“comprar pão para ...”; 7) Acolhe o
projeto socialista, de partilha – humano - apresentado pelo discípulo André: “Eis uma criança com cinco pães e dois peixes”;
8) Propõe organizar o povo em grupos de 5, de 10, de 50, de 100 etc; 9) Abençoa
os pães e os peixes, ou seja, cultiva a espiritualidade e a mística que envolve
nossa vida e toda a realidade; 10) Conta com lideranças no meio do povo para “repartir o pão!”; 11) Propõe que seja
recolhido o que está sobrando: “recolham
o que sobrar”. Eis a pedagogia libertadora e emancipatória de Jesus.
Jesus aprendeu que não pode viver
conciliando com podres instituições. Descobriu que só solidariedade não
transforma relações sociais opressoras. Jesus aprendeu que é preciso lutar por
justiça profunda. Jesus aprendeu a “sabedoria da luz, do sal e do fermento”. Mesmo
pouca e pequena, a luz escorraça as trevas, pois incomoda muito os “filhos das
trevas”. Em quantidade ínfima, o sal, aparentemente frágil, incomoda “o arroz,
o feijão, a carne e é imprescindível ao cozinhar”. O fermento, mesmo sendo
pouco, incomoda a massa e, por isso, a faz crescer.
Jesus aprendeu a acreditar no humano,
pois via nas pessoas sofredoras não um poço de miséria, mas uma infinita força
e luz interior, o que é manifestado pela exclamação de Jesus, repetida sempre:
“Tua fé te salvou”, ou seja, postura
existencial de cabeça erguida, amor no coração e utopia no olhar: o paralisado
que “dá um salto”, o cegado que “quer ver” e não se contentar em ficar
recebendo migalhas etc.
Ao perguntarmos aos quatro evangelhos da Bíblia qual é a característica primordial de Jesus Cristo enfatizada em cada evangelho, o Evangelho de Marcos revela Jesus priorizando a luta pela superação da opressão política; o Evangelho de Lucas revela um Jesus indignado diante da opressão econômica; o Evangelho de Mateus mostra Jesus lendo a história na ótica dos oprimidos sob o crivo da misericórdia e não do sacrifício; o Evangelho de João mostra Jesus apontando o poder religioso como opressor. Jesus é como o “vinho novo” que torna a vida uma festa sem fim. Por outro lado, o 4º evangelista mostra a institucionalidade religiosa enrijecida e opressora. Enfim, Jesus aprendeu uma sabedoria libertadora. Nós também podemos assimilar o que liberta e nos desvencilhar de tudo o que nos desumaniza. Com a sabedoria libertadora de Jesus, que está em sintonia com a sabedoria dos povos indígenas e dos povos tradicionais, podemos e precisamos ser “luz no mundo”, “sal da terra” e “fermento na massa”.
08/06/2021
Obs.:
Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - Sabedoria libertadora de Jesus: e nós? - CEBI do
Vale do Aço, MG. Por Frei Gilvander - 06/6/2021
2 - Frei Carlos Mesters: Explicando a Bíblia a
partir da vida do povo | Quadro: Fé na periferia do mundo
3 - Em Jesus, Deus vem até nós - Frei Carlos Mesters
- 09/5/2020
4 - A mensagem de Jesus é feita para os pobres -
Palavras de Fé, com frei Gilvander - 18/3/2021
5 - Dimensão social do Evangelho de Jesus e o lugar
social do CEBI: LUTA POR JUSTIÇA. Por Frei Gilvander
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo
ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma,
Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de
“Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica
no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com
– www.gilvander.org.br
– www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira
III
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