“Tratem-nos como um parente de vocês!” Por Frei Gilvander Moreira[1]
“Em
nome de Jesus, tratem-nos como um parente de vocês!” Esse pedido foi feito em forma de clamor por Cristina, 38 anos,
mãe de três filhos, nascida nas ruas de Belo Horizonte, MG, uma sobrevivente
das ruas que insiste na luta por dignidade e, por isso, não aceita ser
despejada pelo Governador de Minas Gerais, Romeu Zema, e pelo Tribunal de
Justiça de MG. O pedido para ser tratada como parente foi feito às 9h45 do dia
02 de junho (2022), no início da Reunião da Mesa de Negociação do Governo de
Minas Gerais com a Ocupação Vila Fazendinha, no Calafate, em Belo Horizonte,
MG.
Mais de vinte famílias que não suportam
mais as agruras que é sobreviver nas ruas, ou a pesadíssima cruz do aluguel, ou
a humilhação que é sobreviver de favor nas costas de parentes, por saber que
têm direito à moradia adequada e que “uma pessoa sem moradia é como uma pássaro
que voa, voa, se cansa, mas não tem um ninho para pousar”, ocuparam uma área
que estava totalmente abandonada, sem cumprir sua função social: a “Vila
Fazendinha”, no centro da capital mineira, no bairro Calafate. Totalmente
ocioso, o local era usado para descarte de lixo ou por alguns carroceiros para
deixar os cavalos pastarem. O governador Romeu Zema conquistou no Tribunal de
Justiça de MG decisão judicial para despejar as famílias (reintegração de
posse). Como reintegrar em uma posse se não havia ninguém do Governo antes na
posse? Injustamente, os tribunais geralmente só observam se quem reivindica um
imóvel tem documentos, mas não verificam se quem está reivindicando ser
reintegrado na posse estava na posse ou não.
Para acessar o link da reunião virtual
via meet, as famílias da Ocupação Vila Fazendinha foram acolhidas na Ocupação
Invisível, que ocupa um casarão abandonado no centro de BH. No início da
reunião, a palavra foi passada às famílias da Ocupação. Uma cascata de palavras
de fogo, que cortam mais do que navalha, foram ditas para as autoridades que
compõem a Mesa de Negociação. Transcrevo abaixo o que disse Cristina Aparecida
Siriaco, 38 anos, uma mãe com a voz embargada, muito emocionada, cabeça erguida
e olhar fixo de quem queria olhar olho no olho: “Estou aqui para representar não só minha família, mas todo o meu povo.
A gente veio de uma história de família muito difícil. Meu pai e minha mãe me
conceberam nas ruas de Belo Horizonte. Nasci na rua. Fui criada na rua. Sou uma
sobrevivente das ruas. Conheço todo o centro de BH como a palma da minha mão.
Nosso lar era a marquise. O primeiro teto que eu vi para nós foi uma caixa de
papelão de geladeira. Minha mãe nos deixou dentro daquela caixa de papelão e
foi procurar algo para a gente comer. Alguém passou e tocou fogo na caixa com
nós dentro. Tive que sair correndo para não morrer queimada. Em nome de Jesus
(– Cristina repetiu sete vezes ao longo da sua fala -), eu peço a vocês
autoridades para não deixarem acontecer com nossos filhos o que aconteceu
comigo e com minha prima. Ponham a mão na consciência, olhem para nós, ponham o
coração de vocês em nós e nos tratem como um parente de vocês! Sei que os
filhos de vocês, a linhagem de vocês, nunca vão passar pelo que nós passamos,
mas eu estou vindo de uma linhagem que se eu não pedir para vocês... Em nome de
Jesus, não nos despejem lá da Ocupação Vila Fazendinha, pois se isso acontecer,
meu neto será jogado na rua. Nossos pais não tiveram condições de dar um lugar
digno para a gente viver. A Praça Raul Soares, aqui no centro de BH, eu conheço
como a palma da minha mão, pois era o quintal onde a gente vivia e brincava.
Quando nós ocupamos a Vila Fazendinha, lá era tudo abandonado, era local de
descarte de lixo, totalmente abandonado pelo Governo de MG que, hoje se diz
dono daquele lugar. Eu tenho 38 anos de vida e de luta por dignidade. Agora
voltei a estudar, pois tem escola perto da Vila Fazendinha. Eu trabalho como
diarista para famílias do bairro Calafate. Na Vila Fazendinha, estamos tendo
oportunidade de melhorar nossa vida e construir nossa história, nossos sonhos. Minha
mãe morreu por feminicídio, assassinada debaixo do viaduto, onde a gente
morava. Eu com nove anos de idade, apaguei o fogo que um rapaz tinha jogado na
minha mãe, mas não conseguimos evitar a morte dela. Eu tenho três irmãos em
situação de rua, que moram debaixo dos viadutos. Se eu continuar construindo
minha casinha ali na Ocupação Vila Fazendinha, eu poderei ajudar meus três
irmãos e tirá-los da rua. A gente não quer aluguel social, pois após alguns
meses o Governo para de pagar e nos joga na rua novamente. Eu não tenho
condições de pagar aluguel, pois perdi meu emprego na pandemia. Se vocês do
Governo de MG nos despejarem de lá, para onde iremos e que história eu vou
contar para meu neto? Como eu vou ajudar meus irmãos que continuam em situação
de rua se formos despejadas? Não somos lixo para sermos despejados. Há 38 anos
eu estou lutando por dignidade. Lutamos por um lar para podermos envelhecer com
dignidade. Só isso eu peço. Eu não quero que essas crianças passem pelo que eu
passei nas ruas de BH. Vivendo ali na Vila Fazendinha, mexendo na horta comunitária
eu melhorei a saúde e o meu psicológico que estava todo regaçado quando ali
chegamos. Na Ocupação Vila Fazendinha, não tem usuário de droga. Lá as pessoas
trabalham, fazem faxina, lá está nossa história e nossos sonhos. Nossas
crianças estão nas creches próximas. As igrejas ajudam a gente. Na Ocupação
Vila Fazendinha, somos dezesseis famílias, mas uma só grande família. A gente
só quer dignidade, que é um direito de todos. Aquele lugar lá só tinha lixo.
Agora que estamos cuidando do espaço e dando função social para aquela terra,
que estava ociosa, o Governo Zema quer tirar a gente de lá. Isso é muita
violência conosco. O mundo é cheio de terra. Por que a gente tem que sofrer
tanto? Nós já criamos raízes na Vila Fazendinha. Já conhecemos muita gente ao
redor da nossa Ocupação, já fizemos muitas amizades com a vizinhança. Lá, se a
gente fizer uma festinha de aniversário, podemos chamar nossos amigos e amigas.
Como eu cresci sobrevivendo ‘daqui e dali’, eu não tinha amigos/as. Ali na
Ocupação nossas crianças podem brincar, criar raízes e sonhar. Nós amamos
aquele local da nossa Ocupação, pois nos traz segurança, paz e vida. É um lugar
gostoso de morar. Eu já sofri abuso por morar em lugar descampado, ermo, longe
de vizinhança. Nós e nossas crianças precisamos daquele local humilde. Em nome
de Jesus, repito e peço a vocês: não nos despejem!”
“Que sabedoria é esta que vem do meu
povo?!” Com esta sabedoria, altivez e humanismo revelado por Cristina, feminino
de Cristo, uma libertadora e salvadora da humanidade, ela é digna de receber o
título de Doutora Honoris causa da
Universidade do Povo da Rua. Diante do clamor de Cristina, os representantes do
Governo de MG e da prefeitura de BH ofereceram apenas migalhas do CadÚnico e
disseram que não têm outra moradia igual ou melhor para oferecer para Cristina
com suas dezesseis famílias da Ocupação Vila Fazendinha. Entretanto, o
Governador Zema colocou à venda a maioria dos 5 mil terrenos da COHAB[2] no
estado de Minas Gerais, que padece um déficit habitacional acima de 700 mil
moradias. “A ordem é vender o que for
possível, vender do Estado”, “privatizar ao máximo”, repetem os burocratas
do governo vassalo das grandes indústrias, do agronegócio e das mineradoras.
Esta injustiça que clama aos céus nos
remete à parábola bíblica que o profeta Natã contou ao Rei Davi: Havia um
ricaço na cidade que tinha muitos rebanhos e bois e outra pessoa extremamente
pobre que tinha apenas uma ovelha, que “era
como filha para ele” (2Sam 12,3). A um viajante que chegou em sua casa, o
rico não quis oferecer nada do seu imenso rebanho – sua riqueza -, mas furtou a
única ovelhinha que o pobre tinha e a sacrificou para oferecer a quem tinha
batido na sua porta. O rei Davi, espantado e furioso, disse que esse homem
enriquecido merecia a morte. O profeta Natã retrucou: “Esse homem é você mesmo!” (2 Sam 12,7). Isso porque o rei Davi
tinha feito injustiças e crimes, entre os quais, mandar assassinar Urias, que
em hebraico significa “O Senhor é minha luz” (Cf. 2 Sam 12,-1-12).
A terra aprisionada em latifúndios para o agronegócio e a falta de reforma urbana violentam a dignidade de milhões de pessoas. A prefeitura de Belo Horizonte informou na última semana que existem na capital mineira 17 mil lotes vagos e mais de 80 prédios ou casarões abandonados no centro de BH, dentro do perímetro da Av. do Contorno. Nos bairros nobres, há milhares de casas ou apartamentos luxuosos com poucas pessoas, enquanto nas periferias o povo negro sobrevive apertado, quase amontoado. Eis sinais evidentes de que a escravidão não acabou, pois relações sociais escravocratas se reproduzem cotidianamente. Povo sem-terra e sem-teto, UNI-VOS em lutas coletivas por terra, moradia, pão e liberdade!
07/6/2022
Obs.: As videorreportagens nos
links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 - MÃE
PALAVRAS DE FOGO: "Zema, não nos despeje! Nasci na rua. Minha mãe foi
morta nas ruas de BH/MG"
2 - Gov.
Zema despejando POBRES no centro de BH/MG. "Não somos lixo!" Ocupação
Vila Fazendinha. Vídeo 1
3 - Em
vigília de natal, mães clamam p/ não serem despejadas da Ocupação Vila
Fazendinha em BH- 23/12/21
4 - Ameaça
de despejo da Ocupação Vila Fazendinha, em Belo Horizonte, MG. Alto lá! Vídeo 1
– 08/12/21
5 - Crianças
e mães CLAMAM para não ser despejadas na Ocupação Vila Fazendinha, Belo
Horizonte. Vídeo 2
6 - "O
Governo de MG e o TJMG vão despejar a Ocupação Vila Fazendinha em BH e nos
jogar na rua?" Vídeo 3
7 - Injusto
despejar 30 famílias da Ocupação Vila Fazendinha em BH. Jogá-las na rua? Vídeo
4 - 11/12/21
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor
da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no
SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros.
E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira
III
[2] Companhia de Habitação do
Governo de Minas Gerais.
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