Esperar lutando: eis o caminho! Por frei Gilvander Moreira[1]
A pedra de toque da
pedagogia da luta pela terra, por moradia, por território e por outros direitos
humanos fundamentais é o diálogo, que é uma relação horizontal entre pessoas –
relação ‘eu-tu’ e não ‘eu-isso’ -, respeitadas como sujeitos, autônomas e com
dignidade próprias. No fluir de palavras, experiências e ideias, no diálogo,
melhor dizendo, no ‘pluriálogo’, a luta pela terra, por moradia adequada, por
território etc. é construída e realizada processualmente, de forma permanente.
Assim, na luta
coletiva por direitos acontece uma mudança na forma de conceber a história.
Passa-se de uma compreensão linear, positivista e idealista, na qual a
ideologia dominante reproduz as relações sociais de superexploração, para uma
compreensão materialista histórico-dialético da realidade. A compreensão
positivista abre espaço para a afirmação do ‘fim da história’, como se
estivesse fadado a ser o futuro apenas uma repetição do presente e este uma
mera repetição do passado.
Diferentemente, a concepção materialista e dialética da história
introduz a possibilidade de superação das relações sociais de exploração e abre
caminho para a afirmação de que a história não acabou, está em aberto e,
consequentemente, podemos fazê-la no sentido de produzir transformações e
mudanças que alterem para melhor – com ética e justiça - o que está dado. Isso
acontece de alguma forma em níveis variados na luta pela terra, por moradia e
por território como algo que fomenta processos emancipatórios. E essa
compreensão, segundo Paulo Freire, não seria possível sem a utopia. “Na verdade toda vez que o futuro seja
considerado como um pré-dado, ora porque seja a pura repetição mecânica do
presente [...], ora porque seja o que teria de ser, não há lugar para a utopia,
portanto para o sonho, para a opção, para a decisão, para a espera na luta...
Não há lugar para a educação. Só para o adestramento” (FREIRE, 2009, p. 92).
A luta pela terra, por
moradia, por território e por outros direitos, realizada de forma coletiva, é
uma forma de dar vazão, de forma organizada e canalizada, à indignação sentida
no próprio corpo do camponês expropriado da terra, do sem-casa sacrificado pela
cruz do aluguel (especulação imobiliária) ou pela humilhação que é sobreviver
de favor, do parente indígena ou dos outros Povos e Comunidades Tradicionais
desterritorializados, e exprimir o inconformismo e a rebeldia. Boaventura de
Sousa Santos advoga isso para uma educação emancipatória: “Educação, pois, para o inconformismo, para um tipo de subjetividade que
submete a uma hermenêutica de suspeita a repetição do presente, que recusa a
trivialização do sofrimento e da opressão” (SANTOS; MENESES, 2010, p. 19).
Em uma sociedade estruturalmente desigual não interessa uma educação escolar e
uma ‘escola da vida’ que desencadeie o processo de inconformismo, mas, ao
contrário, interessa adestrar e domesticar seres humanos para ser mera força de
trabalho, máquinas vivas que funcionam a engrenagem do sistema do capital. A
luta pela terra educa enquanto educação extraescolar e mais do que na ‘escola
da vida’, pois educa na luta coletiva por direitos.
As compreensões
teóricas positivistas e idealistas, compreensões veiculadas pela ideologia
dominante – ideias da classe dominante -, inibem a luta pela terra, por moradia
e por território enquanto pedagogia de emancipação humana. Por mais exploração
que a pessoa humana sofra, ela não perde completamente a capacidade de se
recriar. Assim, faz diferença quando a luta por direitos é impulsionada por
compreensões teóricas do materialismo histórico-dialético, porque isso poderá
ser um facilitador para desencadear práticas emancipatórias e não voltar a
reproduzir o sistema do capital após as primeiras conquistas.
Referindo-se ao
movimento do conhecimento, à dialética freiriana, Paulo Freire pondera: “[...] a toda compreensão de algo
corresponde, cedo ou tarde, uma ação. Captado um desafio, compreendido,
admitidas as hipóteses de resposta, a pessoa humana age. A natureza da ação
corresponde à natureza da compreensão. Se a compreensão é crítica, ou
preponderantemente crítica, a ação também o será. Se é mágica a compreensão,
mágica será a ação” (FREIRE, 2002, p.
114).
Óbvio que o resultado
depende do ser social, ou seja, para mudar é preciso mudar as condições
materiais objetivas e não apenas a consciência. Não basta conscientizar. Não
podemos admitir a perspectiva que afirma o ser existente como se fosse algo
quase mecânico, determinado, que fosse dado como causa e efeito. Assim,
recairíamos no determinismo. A realidade é complexa e envolve aspectos que
muitas vezes alteram o curso da história. Concordamos com Paulo Freire em que
possa ocorrer uma tendência, mas não como algo inexorável. Muitas vezes as
ações estão em consonância com o que a pessoa pensa teoricamente, mas outras
vezes, não. O que Freire sugere exige que a pessoa tenha compreensão crítica
emancipatória em todas as dimensões da vida: politicamente, economicamente,
socialmente, em questão de gênero, ecologicamente, religiosamente etc.
Paulo Freire
alerta-nos que encontramos três tipos de consciência nas pessoas e as distingue
como consciência ingênua, mágica e crítica (Cf. FREIRE, 2002, p. 113-114) e há
pessoas que não vão à luta e outras que se engajam na luta por direito à terra,
à moradia e pelo território. Em nível de conhecimento, às vezes, a pessoa se
diz crítica com postura dialético-marxista politicamente, mas é neoliberal
economicamente e fundamentalista religiosamente. Não apenas há diferença de
consciência entre as pessoas, mas também nas pessoas em si mesmas. Para o
processo de emancipação humana um grande desafio é despertar e promover prática
e compreensão materialista histórico-dialética sob todos os aspectos que
envolvem a convivência humana. Não pode, por exemplo, quem está na luta pela
terra ser homofóbico ou quem milita no movimento LGBTTQI+ discriminar quem está
na luta pela terra ou ser racista.
Assim, pode-se falar da chama acesa da esperança que brota e/ou reacende na luta coletiva dos oprimidos, injustiçados e todas as pessoas de boa vontade, como opção ética e humanística de lutar por terra, território, moradia, trabalho; por direitos fundamentais; por vida digna e por liberdade; com coerência, determinação e coragem.
Referência
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a
Pedagogia do Oprimido. 16ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.
Idem. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2002.
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Cortez Editora, 2010.
13/12/2022
Obs.: As videorreportagens nos links,
abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Dom Vicente: “Mineração em Brumadinho, MG e Brasil, matando
crianças com metais pesados no sangue"
2 - Santana e João, casal exemplar no P.A Paulo Freire, em
Arinos, MG! Exemplo de luta pela terra! Vid 3
3 - De Riachinho/MG: Dona Antônia, 1ª professora do sertão do
Urucuia, e Sr. Vadu: uma história exemplar
4 - Horta Comunitária e Escola Indígena na Retomada Indígena
Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG: BELEZA!
5 - "Não aceitamos despejo nem mortos!" Povo da
Ocupação Fábio Alves no Barreiro, em BH/MG. Vídeo 5
6 - Com + de 600 casas, Povo da Ocupação Prof. Fábio Alves,
no Barreiro, BH/MG, jamais aceitará despejo
7 - Davi Kopenawa e Yanomami/Watoriki comemoram vitória de
Lula e reivindicam demandas urgentes-09/11/22
8 - STF proíbe despejo sem alternativa adequada e prévia -
Por frei Gilvander - 10/11/2022
9 - Mística
Kamakã Mongoió e música indígena: final da VII Semana de Antropologia e
Arqueologia da UFMG
10 - Despejo é violência, destrói casas, história e sonhos
Ocupação Novo Horizonte/Ribeirão das Neves/MG
11 - Trajetória apaixonante do Povo Indígena Kamakã Mongoió
até Retomada de Território em Brumadinho/MG
12 - "A Vale matou
meu irmão. Todo mundo em Brumadinho está doente por causa da Vale" (Paré,
do Tejuco)
13 - Frei Gilvander:
"A Vale S/A está fazendo guerra contra a mãe terra, as águas, os povos e
todo o ..."
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em
Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel
em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto
Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e
Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação
Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
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