Como superar a fetichização e a coisificação? Por frei Gilvander Moreira[1]
Muitas vezes, a
realidade social é vista em termos simplistas, com generalizações,
polarizações, dualismos e dicotomias, tais como: tradicional/moderno,
rural/urbano, tradicional/racional, emocional/racional,
pré-capitalista/capitalista etc., mas ao analisar a realidade social em
esquemas dicotômicos acaba-se por pensar ser o mundo ambíguo, o que esconde a
dominação de fundo, que é a dominação do trabalho e da terra pelo capital, algo
que se constrói pela fetichização das mercadorias e coisificação do ser humano
detentor de dignidade e de direitos. E, pior, a ambiguidade se sobrepõe ao
antagonismo e à contradição constitutiva da sociedade capitalista, de modo que
o que é construído nas teias das condições históricas e materiais aparece como
simplesmente imperfeito.
A luta entre sem-terra
– oprimidos - versus latifundiários – opressores - , sem-casa versus especuladores
da cidade, negros versus racistas, mulheres versus homens machistas e
patriarcais, homossexual versus homofóbicos, meio ambiente versus agronegócio e
mineradoras, democratas versos bolsonaristas golpistas, não se trata apenas de
um conflito entre o bem e o mal. Recair também no modo capitalista de pensar é
embaçar e encobrir com uma ‘nuvem de fumaça’ a realidade complexa das relações
sociais e históricas que determinam a exploração do trabalho pelo capital. A
luta pela terra é travada dentro do capitalismo, onde “o modo de produção capitalista, na sua acepção clássica, é também modo
capitalista de pensar e deste não se separa” (MARTINS, 1986, p. IX).
Enquanto modo de produção de ideias, levado para todas as classes sociais a
partir da classe dominante, o modo capitalista de pensar está introjetado no
conhecimento científico tanto quanto no senso comum e diz respeito “ao modo de pensar necessário à reprodução do
capitalismo, à reelaboração das suas bases de sustentação – ideológicas e
sociais” (MARTINS, 1986, p. IX).
Karl Marx analisa o
fetichismo da mercadoria, que gera a alienação na sociedade. Com a
mercantilização de tudo na sociedade capitalista, todo sujeito é transformado
em mercadoria, que se vende e se compra. O que predomina é “a razão que faz com que as coisas se
relacionem umas com as outras como se fossem dotadas de condição humana e que
faz com que as relações entre as pessoas pareçam relações entre coisas”
(MARTINS, 1986, p. 17).
No livro Sobre o modo capitalista de pensar, o
sociólogo José de Souza Martins (1986) nos alerta para a necessidade de uma
sociologia crítica e fecunda. Ele denuncia a segmentação do conhecimento em
disciplinas especiais como um artifício de abstração que torna múltiplo um
objeto que resiste ao rompimento da sua unicidade, aponta a origem ambígua da
sociologia como pensamento conservador necessário à constituição da sociedade
capitalista e advoga pertinentemente a necessidade de se trabalhar teoricamente
a partir de uma visão totalizadora e histórica das situações sociais (Cf.
MARTINS, 1986, p. 26-27.51). A luta pela terra, por território e por moradia
contribui para a superação desse esquartejamento da realidade em disciplinas
especiais e aponta para a importância de se criar visão totalizadora e
histórica das situações sociais.
Resgatar
historicamente as origens de tudo o que se vai analisar é imprescindível para
se compreenderem as condições históricas e materiais que geraram certos tipos
de pensamento que são pensamentos capitalistas. O pensamento não é neutro, não
parte de tábua raspada, mas “é produto de
um estilo de pensamento. O pensamento traduz uma maneira de ver e de viver e,
portanto, uma forma de querer generalizada sob ação dos mecanismos de
alienação, isto é, de reprodução social” (MARTINS, 1986, p. 48).
Não há como haver
emancipação sem criatividade – dimensão poética da vida -, pois a criatividade
evita a adaptação, a adequação e o conformismo diante da ordem estabelecida
vigente. A luta pela terra, por território e por moradia, ao envolver a
participação de todos os Sem Terra, Sem Moradia e Povos Tradicionais
distribuídos democraticamente em comissões e tarefas, cultiva e fomenta a
criatividade entre os camponeses Sem Terra, os Sem Casa e os Povos
desterritorializados, o que desenvolve aspectos emancipatórios. Por alimentar o
trabalho poético – criativo – a luta pela terra, por território e por moradia
dificulta os processos de fetichização e de coisificação. Por isso também, a
luta pela terra, por território e por moradia tem algo de emancipatório.
Pesquisando e acompanhando a luta pela terra em várias regiões do país, ainda
em 1991, José de Souza Martins alertava: “Uma
reforma agrária que não incorpore os projetos e formulações já revelados nas
próprias lutas dos lavradores, que não combine as diferentes concepções e
práticas alternativas de propriedade, e que ao mesmo tempo não abra a
possibilidade de crescimento desses regimes alternativos sem a tutela do
capital, poderia se transformar num mero exercício de ficção” (MARTINS,
1991, p. 59-60).
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) e os Movimentos
Sociais Populares internamente enfrentam no cotidiano da luta por terra,
território e outros direitos socioambientais uma tensão dialética desafiadora
entre “agentes da CPT e trabalhadores/as”, outras vezes entre “cúpula de
assessoria e base”. Mas, cultivando humildade, paixão pela causa das camponesa
e dos camponeses, capacidade de ouvir e levar a sério o que dizem as
trabalhadoras e os trabalhadores, dialogar – falar ‘com’ e não apenas falar
‘para’/‘ao’ ou ‘sobre’ - a CPT e os Movimentos Sociais Populares seguem
empunhando a bandeira da agricultura camponesa, da luta pela terra,
embasando-se nos últimos do campesinato. Lutar pela terra de forma
emancipatória exige não recair em nível pessoal, nem em nível
comunitário-coletivo no dogmatismo, nem no relativismo, nem no basismo, nem no
idealismo e nem no romanticismo. Se a realidade atual é cruel e complexa, não
haverá soluções simplistas, mas complexas, processuais e que exigem
aprimoramento teórico e prático constante. A interpretação da dinâmica social
segundo a perspectiva do materialismo histórico-dialético é algo imprescindível
na construção de emancipação humana.
Em síntese, a dominação do capital sobre o trabalho ancorado no aprisionamento da terra está se reproduzindo cotidianamente. O caminho para a superação desta brutal violência social passa necessariamente pela luta pela terra, por território, por moradia e por todos os outros direitos socioambientais. Tudo isso feito articulando os saberes populares construídos no calor das lutas históricas e gerando condições objetivas materiais que viabilizem mudanças de consciência no rumo de emancipação humana.
Referência
MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência: a questão
política no campo. 3a edição. São Paulo: HUCITEC, 1991
______. Sobre o modo capitalista de pensar. 4ª edição. São Paulo: HUCITEC, 1986.
17/01/2023
Obs.: As videorreportagens nos links,
abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 - Educação para prática de libertação!
- Por frei Gilvander Moreira
2 - “Todo mundo aqui no Jd. Ibirité/MG foi coagido e forçado
a sair das 21 casas. MRS está nos matando"
3 - Esperar lutando por direitos humanos fundamentais: eis o
caminho! Por frei Gilvander Moreira
4
- Frei Carlos Mesters: CF/22 -Fraternidade e Educação. “Fala com sabedoria,
ensina com amor”(Pr 31,26)
5 - “Arborizemos nosso
ambiente! Educação ambiental e práxis ecológica” (Rosimeire Maria, de Arinos,
MG)
6 - Frei Gilvander X
Seguranças da Vale S/A e Educação Indígena Xukuru-Kariri, em Brumadinho/MG.
Vídeo 7
7 - P.A Terra Prometida
do MST em Felisburgo/MG produz alimentos saudáveis e Educação do Campo. Vídeo 3
8 - Frei Gilvander
apoia greve dos trabalhadores e trabalhadoras em Educação de Betim, MG 12 2
2020
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em
Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel
em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto
Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e
Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação
Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
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