Se há agronegócio não há cerrado. Por frei Gilvander Moreira[1]
Divulgação:https://blogdopedlowski.com/2018/02/24/violencia-e-desterritorializacao-no-cerrado-do-piaui-sao-denunciadas-em-nota-publica/
Em uma pesquisa de doutorado
na Faculdade de Educação (FAE), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
pesquisamos a luta pela terra com a seguinte hipótese: a força e a centralidade
da luta pela terra na luta coletiva do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) como um processo de pedagogia
de emancipação humana. Vimos que o MST e
a CPT politizam a questão da luta pela terra afirmando a força da luta pela
terra como força de mobilização emancipatória. Nessa luta, a dimensão religiosa
vivenciada pelo povo sem-terra é algo ambíguo, pois pode contribuir nos processos
e lutas emancipatórias quando fomentam a organização popular e luta coletiva,
mas pode também reforçar processos alienantes quando fomentam o individualismo,
o conformismo e a espiritualização de questões sociais. A Teologia da
Libertação contribui para unir a perspectiva da fé do povo com as lutas
coletivas necessárias para se conquistar justiça agrária e outros direitos
humanos fundamentais.
A história da noção de propriedade privada da terra é
recente. Na maior parte da história humana a terra não era considerada como
algo capaz de ser propriedade privada. Segundo o filósofo Rousseau (1712-1778),
em um determinado contexto histórico, alguém teve a ideia e a coragem de cercar
certo território e dizer que lhe pertencia: “Isto é meu” (ROUSSEAU, 1999, p. 87). E os vizinhos, de braços cruzados, aceitaram
de forma resignada o início da privatização da terra, algo que era até então
bem comum de todos/as. Assim, os vizinhos, por omissão/cumplicidade, aceitaram
aquele evento sem prever as graves consequências futuras do que estava
acontecendo. Ao dizer “Isto é meu” e
cercar um pedaço de terra, em um triste dia, estava nascendo a sociedade civil,
a propriedade privada dos meios de produção e com ela a desigualdade entre as
pessoas, regiões e países.
Assim, em determinada condição histórica material e
objetiva se lançaram as bases da propriedade privada capitalista da terra,
legitimada pela criação de leis no âmbito da sociedade civil. “Criaram novos entraves para os fracos e
novas forças para o rico” (ROUSSEAU, 1999, p. 222), pois, interrompendo a “independência do homem natural e ampliando a
dependência recíproca entre os indivíduos socializados, no quadro de um regime
baseado na propriedade privada, a divisão do trabalho criou conflitos e
rivalidades entre as pessoas” (COUTINHO, 1996, p. 14).
Para Karl Marx, a pessoa se faz humana trabalhando,
pois pelo trabalho produz bens gerais necessários à vida humana. Mas trabalho é
uma noção contraditória: tem verso e reverso. Pelo verso, o trabalho é
engendrador de riqueza genérica humana, mas pelo reverso é mercadoria que gera
acumulação de capital. Marx afirma o trabalho como um fazer criativo (poiesas, em grego, significa poético) e
denuncia o trabalho escravizador (doulos,
em grego, significa escravo). O
trabalho pode se tornar uma matriz de pedagogia de emancipação humana, desde
que a classe trabalhadora e a classe camponesa se libertem da exploração do
capital que usa a força de trabalho para acumular mais-valia e reproduzir o
sistema do capital. O ser humano é criador de si mesmo e não sozinho, mas em
comunhão de classe injustiçada, emancipa-se quando conquista condições
materiais históricas que possibilitem desenvolver o seu infinito potencial
humano. Na sociedade capitalista há um antagonismo, uma contradição, entre o
trabalho proletário criador e a concepção capitalista do trabalho.
Ao longo da história humana se constituiu a visão
mercantil da terra, produzindo as bases materiais para a apropriação da terra
como propriedade privada capitalista. Isso foi feito usando pedagogias cruéis
em processos sutis que exigem pedagogias delicadas e complexas. Uma dessas
pedagogias foi a desterritorialização de comunidades camponesas para se
territorializar projetos agropecuários de interesse do capital, tal como os do
agronegócio. O uso de linguagem eufemística tem ocultado a exploração
perpetrada pelo capital. Por exemplo, ao dizer ‘expansão da fronteira agrícola’
subentende-se que a ampliação agropecuária se daria em uma região vazia, mas na
realidade tem sido dada em cima de regiões cheias de biodiversidade, de Povos Tradicionais
e Originários com uma multiplicidade de culturas. Logo, o que se chama de
expansão da fronteira agrícola trata-se de invasão de territórios do
campesinato. Aufere-se lucro e progresso para uma minoria e uma devastação
socioambiental para a maioria. Dizer ‘soja no cerrado’ ou ‘agronegócio no
cerrado’ também é contradição, pois para instalar monocultura da soja tem antes
que dizimar todos os cerrados. Logo, se há soja não há cerrado; se há
agronegócio não há cerrado. No momento que se expropria a terra do camponês, se
expropria muito mais, não apenas a terra. O camponês desterritorializado perde
suas raízes humanas e sua identidade cultural. Assim como toda árvore, “o ser humano precisa de raízes, e somente
consegue produzi-las quando participa de uma coletividade” (CALDART, 2012,
p. 346). Se a coletividade estiver sempre em movimento e em luta constante,
geram-se condições materiais objetivas para se produzirem raízes culturais que
se expressam em sujeitos de luta, como os Sem Terra.
Referências
CALDART,
Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 4ª Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
COUTINHO,
Carlos Nelson. Crítica e utopia em Rousseau. In: Lua Nova, Revista de Cultura e
Política. Rio de Janeiro, nº 38, p. 5-30, 1996.
ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
11/04/2023
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto
tratado, acima.
1 - Marco temporal: terra
para os Povos Indígenas ou para o agronegócio devastador? Por Frei Gilvander
2 – Geraizeiros denunciam
SAM, monocultura de eucalipto e vilipêndio de cemitérios/norte de MG. 04/11/20
3 - Aula Magna sobre Fruta
de Leite, Cerrado e Geraizeiros e luta contra monocultura do eucalipto em MG
4 - Soberania Alimentar
com Vandana Shiva. Agronegócio e agrotóxicos matam! Dia da alimentação.
16/10/20
5 - Você sabe de onde vem
a sua comida? O agronegócio envenena a comida do povo. Episódio 1 – Greenpeace
6 - MST ocupa Ministério
da Agricultura, em BH: Luta contra agronegócio; luta por Agroecologia. 30/04/14
7 - Lagoa da Prata/MG:
Águas secadas, monocultura e agrotóxicos/XXI Romaria/Águas/Terra/MG/3a
parte/9/18
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em
Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel
em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto
Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e
Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação
Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
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