É preciso ter coragem! Por frei Gilvander Moreira[1]
Por mais que lorotas dos capitalistas
fascistas que, para desviar o foco e criar cortina de fumaça, acusam de ser
“comunistas” quem luta por justiça socioambiental, por direitos humanos e
direitos da natureza, o fato é que (sobre)vivemos em uma sociedade capitalista,
que é uma máquina de moer vidas humanas e de toda a natureza, no estágio atual
colocando em risco a sobrevivência da humanidade e da maioria das espécies
vivas, porque está devastando de forma brutal o ambiente e gerando a emergência
climática com eventos extremos cada vez mais frequentes e letais. A opressão, a
exploração ou superexploração, violências de mil formas campeiam na sociedade
capitalista, seja na forma de superexploração da força de trabalho pela
uberização do trabalho, remuneração por produção, terceirização ou
quarteirização, seja pelo racismo, pela homofobia, pela discriminação, pelo
feminicídio, pelo patriarcalismo, pelo fascismo etc., todas violências que têm
como causa maior o sistema do capital idolatrado.
Viver, conviver e agir de forma humana
em uma sociedade capitalista é um desafio gigante. A maioria das pessoas, quase
todas das classes trabalhadora e camponesa, reduz a vida à luta pela
sobrevivência, o que exige muitas vezes se omitir ou se tornar cúmplice de
muitas injustiças e violências. Muitos sabem que se tomar partido e denunciar
injustiças é perseguido, demitido, censurado ou excluído sumariamente. Em
muitos cantos e recantos vigora o ditado popular “aqui quem tem olhos não vê,
quem tem boca não fala e quem tem ouvidos não ouve nada, pois se falar morre.”
Lamentavelmente uma das estratégias da sociedade capitalista para reproduzir as
relações sociais capitalistas, que são escravocratas, é a imposição do medo de
muitas formas, pois quem teme fica calado, se omite e, muitas vezes, sem perceber
que está sendo cúmplice. Às vezes, salva a própria pele por certo tempo, mas
condena indiretamente muitos/as ao sacrifício no altar do mercado idolatrado.
Neste contexto de injustiça
institucionalizada e estrutural, é necessário recordarmos a beleza e a
necessidade de sermos pessoas de coragem, destemidas, para andarmos na
contramão “atrapalhando o sábado”. Afinal, peixe vivo é o que nada rio acima. Em
centenas de vezes em que na Bíblia se narra a aparição de um anjo, mensageiro
divino, convidando alguém a abraçar uma missão dada pelo Deus, mistério de
infinito amor, após propor a missão e constatar que a pessoa treme na base
diante do desafio que lhe é proposto, a primeira fala e atitude do anjo é dizer
“Não tenha medo. Coragem! Deus está com você.”
A história humana demonstra que quem faz
história não tem medo, ou seja, tem coragem, “age pelo coração” que fervilhando
de indignação, em ira santa, não se omite e não se torna cúmplice diante de
nenhuma injustiça, exploração ou violência perpetrada contra alguém ou qualquer
ser vivo, de perto ou de longe. Segundo o livro do Êxodo, na Bíblia, após
amargar uns 500 anos de escravidão no Egito, debaixo do imperialismo dos
faraós, os povos oprimidos e superexplorados de várias culturas, diante de um
Decreto do Faraó que mandava matar os meninos ao nascer – fazer controle de
natalidade -, os povos se uniram, se organizaram e partiram para conquistar
terra e liberdade: um sonho bom e invencível. No entanto, no início da
caminhada, os povos se viram encurralados pelo Mar Vermelho à frente, atrás a
tropa de choque dos faraós e montanhas dos dois lados. Nesse apuro, as mulheres
parteiras – Séfora e Fua -, Míriam e Moisés convidaram o povo a dar as mãos e de
cabeça erguida bradaram: “Coragem! Um passo à frente!” O Mar Vermelho se abriu
e os povos seguiram a caminhada para conquistar a terra prometida pelo Deus solidário
e libertador, terra sem males. Foi com coragem que entraram para a história
Séfora e Fua, duas parteiras escravizadas no Egito, Miriam, Moisés e muitas
outras pessoas anônimas, que, enfrentaram o imperialismo dos faraós, no Egito,
por volta do ano 1200 antes da Era Cristã,
Foi assim que os profetas e as profetisas
da Bíblia e de outros textos sagrados de várias religiões entraram para a
história: por enfrentar os opressores, como “Davi enfrentou Golias” e por ter
feito opção de classe, pelos injustiçados, consolando-os na luta pela superação
das injustiças. Galileu Galilei, Giordano Bruno, muitas mulheres consideradas bruxas,
Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Che Guevara, Rosa Luxemburgo, “144 mil”
mártires que viveram enfrentando os dragões de plantão, Margarida Alves,
Marielle Franco, Mãe Bernadete, Chico Mendes, Irmã Dorothy Stang, Padre Josimo,
Padre Ezequiel Ramin, Santo Dias ..., todos/as, entre as várias qualidades que
testemunhavam, demonstraram coragem inabalável diante de ameaças e perigos.
Recordei-me de tudo o que escrevi acima
ao contemplar o que foi, fez e lutou e continua sendo e fazendo – de outra
forma -, Irmã Neusa Francisca do Nascimento, da Congregação das Irmãs da Divina
Providência, que partiu para a vida plena dia 25 de agosto último (2023). Irmã
Neusa dedicou a sua vida à luta dos oprimidos, das Comunidades Tradicionais do
Norte de Minas Gerais e por anos ajudou a construir o Conselho Pastoral dos
Pescadores (CPP) no estado de Minas Gerais e o importante Movimento das Pescadoras
e Pescadores Artesanais, o MPP, que tanta luta vem travando nas barrancas do
Rio São Francisco.
Dia 16 de agosto de 2017, Irmã Neusa Francisca
do Nascimento participou de Audiência Pública na Assembleia Legislativa de
Minas Gerais (ALMG), na Comissão de Direitos Humanos, ocasião em que revelou
coragem inabalável para denunciar com contundência os violentos e violentadores
das Comunidades Tradicionais e especificamente da Comunidade Tradicional
Vazanteira de Canabrava, que estava sendo despejada de forma brutal em
Buritizeiro, nas barrancas do rio São Francisco, no norte de Minas Gerais.
Faço questão de transcrever aqui algumas
denúncias veementes que Irmã Neusa fez ao vivo pela TV Assembleia, da ALMG,
para percebermos a beleza e a necessidade de sermos pessoas corajosas. De
cabeça erguida, com voz firme, Irmã Neusa, no microfone da Assembleia
Legislativa de Minas Gerais bradou: “Inicio
dizendo NÃO a esse processo de retirada de direitos que está violentamente
acontecendo no nosso país, o que torna a vida impossível. Manifesto todo apoio
ao Movimento das Comunidades Tradicionais, que está em movimento de
resistência. Garantir os Territórios das Comunidades Quilombolas e de todas as
outras Comunidades Tradicionais e indígenas é necessário. Está em risco toda a
tradicionalidade dos territórios das Comunidades Indígenas, Quilombolas e Pesqueiras.
‘Com Deus na frente e paz na guia’ – lema de Irmã Neusa -, queremos fazer deste
mundo um lugar bom de viver para todos e todas os viventes da mãe Terra – sonho
de Irmã Neusa. A violência que sofre a Comunidade Tradicional Pesqueira e
Vazanteira de Canabrava, lá em buritizeiro, no norte de Minas Gerais, não é um fato
isolado, mas faz parte da estratégia do latifúndio, agora travestido de agro e
hidronegócio. As Comunidades Tradicionais Pesqueiras, ao longo do rio São Francisco,
vêm sofrendo violentamente processo de expulsão desde a década de 1960, mas, resistindo
a esses mecanismos de expulsão, avançaram na consciência de seus direitos e
estão fincando o pé nas Retomadas de seus Territórios, nos processos de
permanente enfrentamento aos latifundiários e agronegociantes. A gente fica preocupada
com a inércia do Estado, enquanto as Comunidades Tradicionais estão na mira da
bala do latifúndio. A gente vê o fazendeiro, no caso da Comunidade de Canabrava,
fazer o que fez nos últimos dias, enquanto a Comunidade estava esperando desde
fevereiro uma visita do Governo no intuito de demarcar a área da Comunidade. A
Comunidade está dentro da área de domínio da União. Isto já foi comprovado pela
visita técnica da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) na semana passada. Estão
dentro da área da União comprovadamente todas as casas que foram derrubadas no
dia 18 pela Polícia Militar com decisão judicial injusta e as que foram
derrubadas no dia 20 pelos jagunços e pelos fazendeiros. É inadmissível que o Governo
não tenha 120 mil reais para fechar um Convênio com a SPU e uma Universidade para
garantir a permanência das Comunidades nos seus territórios ancestrais, mas
teve 70 mil reais para despejar uma Comunidade Tradicional Pesqueira, que
estava dentro da área da União. Ainda mais inadmissível é aceitar que o
fazendeiro tenha investido mais 20 mil reais e tenha participado diretamente da
expulsão da Comunidade e tenha colocado seus capangas ali vigiando e pondo a
arma no pescoço e na cabeça dos moradores. É inadmissível que a Polícia Militar,
chamada desde as 8 horas da manhã e alertada para socorrer a Comunidade de
Canabrava tenha se omitido, quando o fazendeiro estava fazendo por conta
própria o despejo de forma ilegal, violenta. A Polícia Militar só compareceu
depois de muito empenho no final da tarde e dizendo que não estava indo ali para
proteger a Comunidade, mas simplesmente para acompanhar um perito do Ministério
Público Federal que estava na área aquele dia fazendo estudo antropológico da Comunidade.
Durante todo esse tempo, a gente estava com a Comunidade cercada de jagunços
com tiroteios ameaçando o tempo inteiro, mas a Polícia Militar só foi
comparecer quatro dias depois, mesmo estando a Comunidade de Canabrava cercada
pelos tiroteios dos capangas do fazendeiro. No que a Comunidade Tradicional
decidir a gente está junto para apoiar a Comunidade na resistência sofrendo
toda tentativa de homicídio. A conivência do Estado com os latifundiários e
empresários do agronegócio é brutal e nojenta. A gente está aqui para dizer que
é preciso justiça urgente, pois o fazendeiro está se aliando a outros
fazendeiros. Todas as margens do rio São Francisco, Territórios de Comunidades
Tradicionais, estão sob violência de latifundiários, empresários do agro e
hidronegócio, e do Estado. Pedimos urgência também ao Governo Federal, através
da SPU, para que faça a demarcação de todos os Territórios ao longo do rio São Francisco
que estão tradicionalmente ocupados por Comunidades Tradicionais Vazanteiras na
mira da bala do latifúndio, encurraladas sofrendo todo esse tipo de pressão e
violência. Se essas famílias vão com os filhos para as periferias, lá a polícia
bate e mata; se resiste no seu Território Tradicional e luta para ficar lá, a
polícia se alia aos latifundiários e as expulsa.”
Detalhe: a Irmã Neusa fez todas estas denúncias necessárias enquanto morava na cidade de Buritizeiro, no município onde as violências se perpetravam. Por encarnar as virtudes humanas do amor ao próximo, da humildade, da solidariedade, da justiça e da ética e, acima de tudo, por ser mulher corajosa, Irmã Neusa Francisca do Nascimento “combateu o bom combate, completou a carreira, guardou a fé. A coroa da justiça lhe está guardada, a qual o Senhor, justo juiz, lhe dará naquele dia; e não somente a ele, mas também a todos os que amam a sua vinda” (2 Tm 4,6-8). Guimarães Rosa compreendeu de forma magistral ao conviver com os Povos do Sertão mineiro que “a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” (Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa.). Enfim, que tenhamos a grandeza de honrarmos o imenso legado espiritual, ético e profético que Irmã Neusa Francisca do Nascimento nos deixou, com coragem e compromisso de toda a vida ao lado dos empobrecidos na luta pelos seus direitos. É preciso ter coragem!
30/08/2023.
Obs.: As
videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Que continue em nós
a CORAGEM e a SENSATEZ ÉTICA de Irmã Neusa Francisca do Nascimento, PROFETIZA!
2
- Chega de mineração! Chega de impunidade! Ir. Neusa (CPP) e Clarindo (Mov.
Pescadores). 28/1/19
3 - Irmã
Neusa Francisca Nascimento, profetiza e guerreira na defesa dos empobrecidos,
de Deus no povo
4 - Despejo
da Comunidade pescadora de Canabrava/Buritizeiro/MG: Irmã Neusa Nascimento/CPP.
16/8/17
5 - Verdades
que precisam ser ditas em Betim/MG. “O negócio do Medioli é destruir”. Mulher
de coragem!
6 - “Fé e
coragem!” Culto e Vigília no Beco Fagundes, Betim/MG, sob pressão infernal por
despejo injusto
7 - “Não
vacilem! Coragem na luta por direitos. Metam o pé no barranco!” (Frei Gilvander
na CDD).Vídeo 7
8 -
Alvimar da CPT segundo o MST de MG: trabalho de base, unidade e coragem na
luta. 27/08/16
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo
ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma,
Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas;
prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo
Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com
, www.brasildefatomg.com.br
, www.revistaconsciencia.com
, www.racismoambiental.net.br
e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com
– www.gilvander.org.br
– www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira
III
Nenhum comentário:
Postar um comentário