Igreja e questão agrária: da solidariedade à Opção pelos Pobres? Por Frei Gilvander Moreira[1]
A
história da Igreja Católica no Brasil mostra mudança de postura com relação aos
camponeses que lutam pela terra. Houve tempos da cumplicidade da Igreja com o
latifúndio, os latifundiários, como o revelado pelo bispo de Campanha, no sul
de Minas Gerais, em 1950. Passou-se para uma postura de solidariedade sob
ingenuidade política que levava os padres e bispos a acreditarem que o problema
da miséria e da pobreza seria resolvido com o crescimento econômico do País. E,
pouco a pouco, parte da igreja abraçou uma postura política na defesa do
campesinato e de denúncia do latifúndio como opressor ao compreender que quanto
mais se desenvolvia o capitalismo mais gerava miséria e violência social.
A Constituição de 1946, no seu artigo 141, não
alterou o pacto político que garantia os interesses dos grandes proprietários
de terra ao restringir as “desapropriações
de terra para fins sociais (inclusive, para a reforma agrária) à
obrigatoriedade da indenização prévia e em dinheiro ao proprietário”
(MARTINS, 1999, p. 72). A Constituição de 1946 prescrevia ainda que a
indenização fosse justa. No entanto, a atuação de militantes do Partido
Comunista junto aos camponeses no Brasil, precisamente aos arrendatários das
Ligas Camponesas e aos posseiros de Trombas, em Goiás, provocou o engajamento
da Igreja Católica junto aos camponeses, inicialmente em campanhas de
alfabetização, de conscientização e de organização. O pontapé foi dado por um
bispo conservador, Dom Inocêncio Engelke, da Diocese de Campanha, no sul de
Minas Gerais, que lançou, em 10 de setembro de 1950, em um encontro de 60
párocos, 250 fazendeiros e 270 professoras camponesas, uma Carta Pastoral[2],
sobre a iminência da reforma agrária, na qual anunciava, desde o título
provocante: “Conosco, sem nós ou contra
nós, se fará a reforma rural” (ENGELKE, 1976, p. 43-53). Esse documento do
bispo Engelke “é significativo porque
expõe, sem procurar disfarçar o contexto ideológico, ideias e preocupações que
se manterão no centro das inquietações da igreja nas décadas seguintes”
(MARTINS, 1999, p. 100). O documento alerta para os problemas que o êxodo rural
estava causando aos fazendeiros, privando-os de mão de obra econômica e
abundante. E também assinala o risco de a Igreja perder seus fiéis na cidade
com a transformação dos camponeses em operários nas fábricas, onde a atuação
dos militantes do Partido Comunista era mais incisiva. A Carta Pastoral do
bispo Engelke alertava para o “perigo comunista”: “E os agitadores estão chegando ao campo. Se agirem com inteligência,
nem vão ter necessidade de inverter coisa alguma. Bastará que comentem a
realidade, que ponham a nu a situação em que vivem ou vegetam os trabalhadores
rurais” (ENGELKE, 1950, p. 45). E conclama os proprietários de terra: “Antecipai-vos à revolução” (ENGELKE,
1950, p. 46).
A
experiência concreta do crescimento econômico na ampliação do capitalismo no
Brasil fez parte da Igreja migrar de uma postura moral para uma postura
política com relação à questão agrária, que “é uma entre outras expressões das contradições do capital”
(MARTINS, 1983, p. 18). E revelou também que o subdesenvolvimento do País não
era falta de desenvolvimento[3] –
melhor dizendo, envolvimento -, mas consequência do crescimento econômico dos
países capitalistas do norte. Logo se transitou da defesa de desenvolvimento de
um capitalismo inacabado para um capitalismo inviável. “As esperanças que a igreja depositou na ação do Estado e no
desenvolvimento econômico por ele induzido foram corroídas mais ou menos
depressa” (MARTINS, 1989, p. 46).
A história social da terra e da luta pela terra na
Amazônia acabou colocando em xeque a ideia da Igreja de que dentro do próprio
capitalismo se poderia resolver o problema social da miséria imposta aos
camponeses. Em confronto com a realidade dura do capitalismo alastrando-se na
Amazônia, parte da Igreja se movimentou de uma postura de solidariedade aos
camponeses posseiros para um compromisso com a luta pela terra enquanto questão
política, o que inclui Opção pelos Pobres e Opção de Classe. No livro O poder do atraso: ensaios de Sociologia da História Lenta, José de Souza Martins analisa: “A Amazônia pôs a Igreja diante da evidência
de que o capital e o desenvolvimento capitalista maciços, ao contrário do que
se supunha, podiam criar problemas sociais de tal gravidade, que se equiparavam
ou superavam os gravíssimos problemas da miséria rural do Nordeste. Até então,
o conjunto das ideias que norteavam as concepções e ação da Igreja em relação à
questão agrária estavam centralizadas no princípio de que o progresso
promoveria a equitativa distribuição dos bens, isto é, o próprio capital poderia
resolver a questão agrária” (MARTINS, 1999, p. 124-125).
Enfim, já está demonstrado que quanto mais se desenvolve o capitalismo, mais ocorre concentração de terra e poder, mais devastação socioambiental acontece. Neste contexto, realizar reforma agrária popular e os Povos Originários (Indígenas) e Tradicionais resgatarem todos os seus territórios – missão de todos/as - não é panaceia para a superação de todas as injustiças, mas é condição sine qua non para superarmos o sistema do capital e construirmos uma sociedade do Bem Viver e Conviver com justiça econômica, sustentabilidade ambiental, solidariedade social, responsabilidade geracional e respeito à pluralidade cultural e mística. Que a Igreja resgate cada vez mais sua Opção pelos Pobres; a Igreja-Povo mesmo, não atrelada ao poder. Isso passa necessariamente pela derrubada da tese injusta do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal.
Referências.
ENGELKE, Dom Inocêncio. Carta Pastoral:
“Conosco, sem nós ou contra nós se fará a reforma rural”. In: CNBB. Pastoral da Terra. São Paulo: Edições
Paulinas, p. 43-53, 1976.
MARTINS,
José de Souza. O poder do atraso: ensaios
de Sociologia da História Lenta. 2ª edição. São Paulo: HUCITEC,
1999.
______. Caminhada
no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos sociais do
campo. São Paulo: HUCITEC, 1989.
______. Os Camponeses e a Política no Brasil: as
lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 2ª edição.
Petrópolis: Vozes, 1983.
24/08/2021
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo,
ilustram o assunto tratado acima.
1 - Pedro
Casaldáliga fez opção radical pelos pobres e se guiava pela sabedoria popular.
Por Frei Betto
2 - Padre
Ezequiel Ramin: Mártir da Opção pelos Pobres (Documentário Verbo Filmes).
24/7/2020: 35 anos
3 - Frei
Gilvander: Opção pelos pobres e compromisso com as causas sociais. BH/MG -
30/7/2017
4 - Palavra
Ética, na TVC/BH: Samuel Costa/MSTMG. Questão agrária em MG e Reforma Política.
14/11/14
5 -
Palavra Ética na TVC/BH: Padre Josimo Tavares e Leonardo Boff. Por Frei
Gilvander - 06/6/2020
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da
CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB
(Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2]
ESTUDOS DA CNBB. Pastoral da Terra,
São Paulo: Edições Paulinas, 1976.
[3] Para discussão
das categorias ‘subdesenvolvimento’ e ‘desenvolvimento’ sugerimos o livro
SACHS, Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento: Guia para o
Conhecimento Como Poder. Petrópolis: Vozes, 2000. Neste livro, Sachs
demonstra como ‘desenvolvimento’ se firmou como ideologia que mascara a
perversidade do lado avesso do desenvolvimento, justificando a ideologia do
desenvolvimento sustentável no campo ambiental como algo hegemônico tentando
ancorar-se no que muitos autores chamam de modernização ecológica ou economia
verde, mas na realidade é ‘mais do mesmo’: progresso econômico que vai deixando
um rastro de devastação socioambiental atrás de si.
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