Injustiça agrária é raiz da injustiça social. Por Frei Gilvander Moreira[1]
No início
da terceira década do século XXI, o momento dramático que vivenciamos exige de
nós uma compreensão acurada do que é e do potencial emancipatório da luta pela
terra - transformação para melhor das
condições históricas materiais objetivas para além do capital -, não apenas da
necessária continuidade da luta pela terra, mas principalmente como deve ser continuada tal luta para
reacender esperanças e propostas gestadas por quem faz história com as próprias
mãos, pois “nem os mortos estarão seguros
se o inimigo vencer” (BENJAMIN, 2012, p. 12). Como quem busca decifrar os
mistérios do que oprime, humilha, escraviza e mata camponeses e como alguém que
cultiva esperança contra toda desesperança, compreendemos a luta pela terra
como pedagogia de emancipação humana, mais do que emancipação política. “A luta pela terra não se pode restringir,
apenas e especificamente à luta pelo direito do acesso à terra; deve, isto sim,
ser a luta contra quem está por trás da propriedade capitalista da terra, ou
seja, o capital” (OLIVEIRA, 2007, p. 67). Ciente de que “não se consegue compreender a fundo um
movimento social, se não se vive um pouco de suas razões e sentimentos”
(CALDART, 1987, p. 13), compreendemos que a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e
o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), não sendo movimentos
homogêneos, entre dezenas de outros movimentos camponeses, transformam
processualmente na luta sem-terra em Sem Terra, novo sujeito social e político
que, além de muitos bens necessários à reprodução da vida humana, produz
pessoas humanizadas e humanizadoras, “seres
humanos que assumem coletivamente a condição de sujeitos de seu próprio destino,
social e humano” (CALDART, 2012, p. 23).
Marx termina o prefácio da obra Para a Crítica da Economia Política
impondo uma exigência, fazendo analogia da ciência com o inferno, citando Dante
Alighieri na Divina Comédia. “Na entrada para a Ciência – como na entrada
do Inferno – é preciso impor a exigência: Que aqui se afaste toda a suspeita /
Que neste lugar se despreze toda a covardia.)” (MARX, 2005, p. 54). Nesse
tom pesquisamos a luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana
buscando superar suspeitas, dúvidas e covardias, sejam elas de qualquer origem,
e para isso nos impomos uma exigência: buscar rigor científico nas razões
profundas da luta pela terra como possibilidade de emancipação humana. Óbvio
que não qualquer rigor e nem qualquer ciência.
Se algum tipo de reforma agrária, a economicista,
já foi feita no Japão, na Europa e nos Estados Unidos, por que no Brasil não
foi implementado, ainda, nenhum tipo de reforma agrária e muito menos uma revolução
agrária? Como compreender isso? Incomodado, indignado e inconformado diante
dessas questões, ciente de que “no
problema fundiário está o núcleo das dificuldades para que o País se modernize
e se democratize” (MARTINS, 1999, p. 12), pesquisamos a luta pela terra em
Minas Gerais, como pedagogia de emancipação humana, na esperança de elaborar
algo teórico-prático que sirva como um despertador e gerador de mais luta pela
terra e, principalmente, com métodos que apontam no rumo de emancipação humana.
Ciente de que uma sociedade não é apenas “todos nós”
ou “toda a população”, mas assume diferentes identidades e características
dependendo do espaço (América do Norte ou Latina, Ásia, África, Europa ou
Oceania) e do tempo (a sociedade do século I da Era Cristã, do século XVI ou a
do século XX, ou ainda a da década de 1960 ou a atual), uma sociedade que gera
barbárie e mais barbárie não existe simplesmente pela vontade dos
latifundiários. Não basta condenar moralmente o latifúndio como sendo
diabólico, satânico e injusto, mas é necessário desarticular as condições
materiais objetivas que sustentam uma sociedade latifundiária. Em que medida a
luta pela terra tem minado essas condições objetivas?
Enquanto pedagogia de emancipação humana, a luta
pela terra está em crise no contexto do agronegócio que campeia com
monoculturas brutalmente devastadoras ambientalmente, uso indiscriminado de
agrotóxicos, utilização de tecnologias de transnacionais, de última geração e
aproveitamento de mão de obra em situação análoga à de escravidão? O
agronegócio está em crise, “pois, além de
devorar energia e água, concentra terra e renda, provoca graves impactos
ambientais, elimina empregos e não resolve a fome no mundo” (LEROY, 2010,
p. 293).
Na luta pela terra há luta pela terra que escraviza
e há outras formas de lutar pela terra que emancipa? Mais do que lutar pela
terra ou para além dela, a CPT e o MST têm como questão fundamental: que tipo
de luta pela terra continuar fazendo?
Buscar o chão concreto da mediação é necessário, “partir
da terra para atingir o céu” – céu aqui mesmo na terra -, partir das camponesas
e dos camponeses, trabalhadoras e trabalhadores, mulheres e homens reais, de
carne e osso, conforme afirmam Marx e Engels, em A ideologia alemã: “A
estrutura social e o Estado provêm constantemente do processo de vida de
indivíduos determinados, mas desses indivíduos não como podem aparecer na
imaginação própria ou alheia, mas sim tal como realmente são, quer dizer, tal
como atuam, como produzem materialmente e, portanto, tal como desenvolvem suas
atividades sob determinados limites, pressupostos e condições materiais,
independentes de seu arbítrio” (MARX; ENGELS, 2007, p. 93).
Não podemos esquecer o dinamismo da práxis transformadora da classe trabalhadora e do campesinato como sujeitos históricos. No Brasil com a brutal injustiça social, agrária, ambiental e urbana, é vital usarmos como instrumental de análise da realidade o materialismo histórico-dialético, enquanto ciência filosófica marxista que compreende sociologicamente o que caracterizam a vida da sociedade, sua evolução histórica e a prática social dos indivíduos, no desenvolvimento da humanidade, sempre como uma realidade material permeada de contradições, violência e exploração que moldam o jeito das pessoas pensarem e agirem, enquadrando-as geralmente dentro da ideologia dominante, que é imprescindível para a reprodução das relações sociais de superexploração. Criado por Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), o materialismo histórico-dialético é uma perspectiva teórica, metodológica e analítica para compreender a dinâmica e as transformações da história e das sociedades humanas. O termo ‘materialismo’ diz respeito à condição material da existência humana e não tem nada a ver com ateísmo, o termo ‘histórico’ parte do entendimento de que a compreensão da existência humana implica na apreensão de seus condicionantes históricos, e o termo ‘dialético’ tem como pressuposto o movimento da contradição produzida na própria história. Enfim, somente com instrumentais teóricos críticos podemos analisar uma realidade violenta e violentadora e esboçar caminhos emancipatórios. Neste sentido, a injustiça agrária e uma estrutura fundiária pautada no latifúndio é a raiz maior causadora da injustiça social e da brutal desigualdade social.
Referências.
BENJAMIN,
Walter. O anjo da história.
Organização e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
CALDART,
Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 4ª Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
______. Sem Terra Com Poesia. Petrópolis:
Vozes, 1987.
LEROY, Jean Pierre. Territórios do futuro: educação, meio ambiente e ação coletiva. Rio de
Janeiro: Fundação Heinrich Böll/Lamparina Editora, 2010.
MARTINS, José de Souza. O poder do atraso: ensaios de Sociologia da
História Lenta. 2ª edição. São Paulo: HUCITEC, 1999.
MARX,
Karl. Karl Marx: para a crítica da Economia Política, Do Capital, O Rendimento
e suas fontes. São
Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 2005.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A
Ideologia Alemã: crítica da mais
recente Filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e
do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo:
Boitempo Editorial, 2007.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: Labur Edições, 2007. Disponível em http://www.geografia.fflch.usp.br/graduacao/apoio/Apoio/Apoio_Valeria/Pdf/Livro_ari.pdf
10/08/2021
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o
assunto tratado acima.
1 - Acampamento
Pátria Livre/MG: 600 famílias vítimas/crime Vale/Estado/ injustiça
agrária/08/1/2019
2 - Despejo de
Ocupação em Miravânia, norte de MG: imensa injustiça agrária e social. Vídeo 1.
09/7/2019
3 - Injustiça Agrária
em MG: Dr. Afonso Henrique/MP denuncia: Não há Reforma Agrária. 21/01/2013
4 - Rompimento de
talude em mina da Itaminas em Sarzedo/MG, 09/8/21: Novas tragédias sendo
construídas?
5 - CPT-MG 40 anos -
Madalena: "Nossa luta é contra o latifúndio, arma mortífera" - Vídeo
5 - 07/3/2018
6 - Ameaçado por
lutar contra o latifúndio, DIM CABRAL, da Cooerco.SD, Uberlândia/MG. Justiça! 24/5/18
7 - Violência do
latifúndio cresce no norte de MG/Audiência Pública/ALMG/Toninho do MST.
25/4/2018
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo
ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma,
Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof.
de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte,
MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com
– www.gilvander.org.br
– www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira
III
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