Como superar o medo de lutar por direitos? Por Frei Gilvander Moreira[1]
Uma
pergunta instigante tem a força de fazer irromper narrativas do mais profundo
vivenciado pelo ser humano. Dia 21 de setembro de 2014, Aldemir Silva Pinto,
hoje, assentado no Assentamento Dom Luciano Mendes de Almeida, em Salto da
Divisa, no Baixo Jequitinhonha, MG, em uma Roda de Conversa sobre a Luta pela
Terra, fez questão de retomar a palavra e narrar a ameaça de morte que sofreu e
como lidou com ela. “Eu também sofri uma ameaça
forte de morte, de gente daqui do Salto da Divisa em 2014. Eu estava na fazenda
Monte Cristo. Um homem apelidado de Casagrande caminhou no meu rumo e disse que
ia semear gasolina no Acampamento Dom Luciano – atualmente Assentamento Irmã
Geraldinha, na Fazenda Manga do Gustavo -, incendiar tudo e matar os que
sobrassem. Disse que todos nós Sem Terra iríamos morrer. Ouvi, fiquei calado e
depois retruquei: “É só mostrarem o documento da terra. Casagrande, você sabe
que nós podemos te denunciar?” Ele continuou: “Você lembra o que aconteceu lá
em Felisburgo?”(Ele se referia ao massacre de cinco Sem Terra dia 20 de
novembro de 2004[2]). Eu reafirmei que ia denunciá-lo. Cheguei ao
acampamento e contei para os companheiros, que foram comigo lá na sede da
Polícia Militar em Salto da Divisa, às 17h00. Lá, comecei a conversar com o
sargento da Polícia Militar. Um que era parente disse para deixar isso para lá.
“Isso é brincadeira”, disse. Retruquei: “Isso não é brincadeira. É coisa muito
séria.” O Sargento registrou a ocorrência e eu saí de lá com uma cópia na mão.
Enviamos cópia para o Deputado Rogério Correia, do PT. Representamos contra o
ameaçador também na delegacia da cidade de Jacinto. O delegado me disse que
iria investigar”.[3]
Na luta
pela terra e/ou pela moradia, perder o medo e adquirir coragem é um dos
primeiros passos no processo de emancipação humana. A passagem do medo, que
reproduz a resignação, para a coragem, que produz engajamento na luta contra as
injustiças, normalmente acontece com a combinação de lutas concretas, rede de
apoio e conhecimento adquirido, que desnuda a ideologia dominante e escancara a
engrenagem de violação dos direitos humanos fundamentais.
A agente de pastoral da Comissão Pastoral da
Terra (CPT) Geralda
Magela da Fonseca (nossa querida Irmã Geraldinha), sempre atenta a tudo, na Roda de
Conversa, precisou: “Não denunciamos
publicamente todas as ameaças que sofremos, pois há muitos crimes que a Justiça
e a PM não conseguem investigar, julgar e punir tudo o que é solicitado. A
lentidão da Justiça tem levado os companheiros/as a não fazer todas as
denúncias. Há exemplos de denúncias feitas e que depois de dez anos não houve
investigação.” O conluio das instituições do Estado com a classe dominante
atua cotidianamente no sentido de frear as iniciativas emancipatórias. Isso se
dá quando não se investiga e desconversa dizendo que os tribunais estão
abarrotados de processos. A lentidão do poder judiciário é proposital para
disseminar a descrença de que é possível obter justiça. Logo, mais do que
lentidão o que ocorre é cumplicidade do poder judiciário com a espiral de
desigualdade e violência reinantes. Nesse contexto, os Sem Terra na luta pela
terra e os Sem Teto na luta pela moradia atuam no sentido de bloquear esse
ciclo vicioso e instalar um ciclo de conquistas de direitos sociais que vai no
rumo de alguma emancipação.
Em roda
de conversa, no Acampamento Dom Luciano Mendes (hoje Assentamento Irmã
Geraldinha), perguntamos: “Qual é a
diferença entre as ameaças que vocês recebiam antes e depois? O que é pior ou
menos pior: as ameaças que os camponeses sofrem nas garras dos latifundiários
ou as ameaças que vocês estão sofrendo por terem ocupado uma fazenda que não
cumpria sua função social?” Aldemir Silva Pinto, militante da luta pela
terra há muitos anos, respondeu com a seguinte narrativa: “Eu já conheço muito bem os fazendeiros aqui da região. Eles só abrem os
dentes para as pessoas na época da política, cumprimentam e abraçam, mas só
para conquistar os votos do povo. Um gerente de fazenda daqui, chamado
Carmelitão, mandou o trabalhador ir embora. Ele disse que não iria. Ele juntou
umas vinte pessoas para expulsar o trabalhador, que entrou dentro de casa,
fechou a porta e mandou entrar. Não tiveram coragem de quebrar a porta e
entrar. Uma filha gritou: “Dê um tempo para a gente sair”. Eles foram embora”.
Na década
de 1970, houve um camponês que adquiriu coragem e resistiu contra o coronelismo
reinante. A notícia correu e animou outras resistências em um processo
histórico que envolveu várias décadas. Houve rito de passagem do medo e da
resignação para a coragem e a resistência. Cleonice dos Santos Silva Souza,
atualmente Sem Terra assentada no Assentamento Dom Luciano Mendes, percebe a
relação que há entre luta pela terra, ameaças, rede de apoio e conhecimento dos
próprios direitos. Quanto menos apoio mais ameaça, e quanto mais apoio menos
ameaça. Quando se adquire conhecimento dos próprios direitos altera-se o
posicionamento no conflito agrário e social. Diz ela: “As ameaças diminuíram por causa do apoio que passamos a receber. Eles
sabem que hoje nós não estamos sozinhos. Eles sabem que sabemos dos nossos
direitos. Antes, a gente não conhecia nossos direitos”. Na mesma linha de pensamento,
Aurelino Lopes do Nascimento, outro Sem Terra, hoje, assentado no Assentamento
Dom Luciano Mendes, revela a sabedoria adquirida na luta pessoal e coletiva: “Naquela época, a justiça era feita pelo
coronel ou por quem tinha dinheiro. A vontade deles era a lei. Antes, quem
tinha terra falava para o fulano ir fazer algo e ele ia, pois ele era pobre e
não entendia nada. Era puxado pelo cabresto. Devagarzinho, o conhecimento foi
chegando e expulsando o medo. Alguém ia para a cidade de Vitória da Conquista
ou para Belo Horizonte e voltava ensinando, trazendo uma ideia nova. Ia
instruindo. Devagar a ignorância foi diminuindo. Foi evoluindo até começar a
chegar notícias dizendo que tinha acontecido ocupação de uma fazenda em um
lugar, em outro. Dizia que era conflito, que morria gente. Aí foi tombando,
tombando até que Deus ajudou e o conhecimento chegou aqui em Salto da Divisa.
Isso depois de a gente ouvir muitas notícias de ocupação de terra por muitas
partes do Brasil. No rádio e na televisão sempre se falava de invasão. Depois
descobrimos que era ocupação e não invasão”.
Em suma, a luta coletiva por direitos sociais tem o poder de exorcizar o medo das pessoas e transformá-las em pessoas corajosas, de cabeça erguida. Por isso. acertadamente, os Movimentos Sociais gritam: “Só a luta muda a vida!” “Quem luta, educa! Quem educa, luta!” “Direitos se conquistam na luta, de cabeça erguida, e jamais pedindo ajoelhados e de cabeça baixa”.
03/5/2022
Obs.: As videorreportagens nos
links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 - “Nossa casa,
nosso sonho!” “Ocupamos por necessidade”. Ocupação Pingo D’água, Betim/MGX MRV.
Vídeo 2
2 - “MRV, não nos
despeje!” “Mãe, a gente vai virar mendigo?” 100 famílias ameaçadas em
Betim/MG/Vídeo 1
3 - “Povo
Xukuru-Kariri fará reflorestamento que Vale faria na Fazenda Bruma”,
Brumadinho, MG. Vídeo 11
4 - Brumadinho,
MG, ganha muito com Povos Indígenas Xukuru-Kariri e Kamakã Mongoió. Fora, Vale!
Vídeo 10
5 - Riso é
revolucionário. Rede de Apoio: Pesquisa e História. Povo Xukuru-Kariri
Brumadinho/MG. Vídeo 9
6 - “Há 20 mil
anos indígenas no Brasil.” Saudação à Mãe Terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho, MG.
Vídeo 8
7 - 22 crianças e
1 profa. na Aldeia Arapowã Kakya, Povo Xukuru-Kariri, Brumadinho, MG. Sopro!
Vídeo 7
8 - Geraizeiros
exigem anulação da Resolução do Governo de MG sobre Consulta Prévia Livre e Informada
9 - Frei
Gilvander: Resolução do Governo de MG violenta direitos dos Povos Tradicionais
a Consulta CPLI
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor
da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no
SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros.
E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira
III
[2] Cf. Massacre de Felisburgo: o
que não pode ser esquecido. http://gilvander.org.br/site/%ef%bb%bfdia-da-consciencia-negra-e-16-anos-do-massacre-de-cinco-sem-terra-em-felisburgo-mg-20-11-2020-o-que-nao-pode-ser-esquecido/
[3] A denúncia da ameaça de morte ao
Sem Terra Aldemir foi feita em Audiência Pública da Comissão de Direitos
Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, realizada na Câmara
municipal de Salto da Divisa, dia 02/7/2014, disponível em http://www.almg.gov.br/acompanhe/noticias/arquivos/2014/07/02_salto_divisa_dir_humanos_barrgem_itapevi.html
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