Ministério Público? Cultura ou barbárie? Por Frei Gilvander Moreira[1]
A ação de reintegração de posse movida
contra famílias vulneráveis da Ocupação Marielle Franco pelo prefeito de Montes
Claros/MG, Humberto Souto, de um partido alinhado à extrema direita, teve a
decisão de despejo concebida pelo juiz da 2ª Vara Pública Municipal de Montes
Claros. O Ministério Público de Minas Gerais, com atuação em Montes Claros, deu
Parecer favorável ao município para despejar 128 famílias em extrema pobreza. Vinte
anos atrás, o então prefeito doou a área para moradia com escritura de doação
registrada no 2º Oficio de Notas de Montes Claros. Logo, decisão injusta do
prefeito Humberto Souto, do juiz da 2ª Vara e do Ministério Público de MG, pois
pisam nos direitos humanos das famílias, a começar do direito de morar
dignamente. Eis um exemplo de uma lista sem fim do Estado violando direitos
sociais. Sinto nojo ver promotor do Ministério Público – ou juiz, ou advogado
ou quem está cegado pela ideologia dominante -, que se diz promotor de justiça,
se referir ao povo das Ocupações como “invasores”; um povo empobrecido, que
cansado da pesadíssima cruz do aluguel ou da humilhação que é sobreviver de
favor nas cosas de parentes ou nas ruas, por falta de reformas agrária e
urbana, pela hegemonia do latifúndio e da especulação imobiliária nas cidades,
não tem outra opção senão ocupar terrenos e prédios abandonados, propriedades
inconstitucionais, porque não cumprem sua função social. A quem se refere às
milhares de famílias das Ocupações camponesas e urbanas do Brasil como
“invasores”, dedico uma das
decisões mais citadas para demonstrar a legitimidade das ocupações: a do
Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça
(STJ), no Habeas Corpus 5574/SP,
quando afirmou que “os sem terra, ao
procederem a ocupação, não praticaram um esbulho possessório, já que eles
investiam contra a propriedade alheia não dolosamente para a prática de
usurpação, mas sim dominados pelo interesse de provocar a implementação da
reforma agrária”. O Ministro Cernicchiaro afirma que "movimento popular visando a implantar a
reforma agrária não caracteriza crime contra o Patrimônio. Configura direito
coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar programa constante da
Constituição da República. A pressão popular é própria do Estado de Direito
Democrático"[2].
Ocupação “não pode ser confundida,
identificada como esbulho possessório, ou a alteração de limites. [...] Não se
volta para usurpar a propriedade alheia” (CERNICCHIARO, 1997, p. 8).[3] A
finalidade das Ocupações é outra. Ajusta-se ao ordenamento jurídico, sendo “expressão do direito de cidadania”.[4]
Quando veremos Promotores/as do Ministério Público, que se dizem de
Justiça, defender sem vacilação o público, o republicano e não propriedade
privada capitalista?
Temos que aprender muito com Walter
Benjamin, pensador crítico que sofreu as agruras do nazismo. Encurralado pela
polícia miliciana de Hitler, Benjamin preferiu suicidar-se do que ser jogado em
um campo de concentração nazista. O pensamento de Walter Benjamin nos inspira e
nos encoraja a dizer que os “bens culturais da civilização” estão calcados
sobre relações sociais escravocratas e violentas sob a aparência de cultura e
de civilização. As pirâmides do Egito escondem a brutal escravidão do
imperialismo egípcio que as fizeram. Todo luxo da elite dominante se constrói
gerando muito lixo, violência e sangue no meio da classe trabalhadora e
causando devastação ambiental. Nas entrelinhas, todo monumento de cultura é um
monumento de barbárie também. Quantos operários estão sepultados na barragem e
hidrelétrica de Itaipu, na Ponte Rio-Niterói, na construção de Brasília, na
barragem e hidrelétrica de Belo Monte, na Transposição do Rio São Francisco?
Quantas vidas estão sendo ceifadas pelo agronegócio ao causar epidemia de
câncer, desertificação dos territórios, asfixia da reforma agrária e da
agricultura familiar, êxodo rural, dependência econômica? Debaixo do tapete da
história oficial, sempre há muita sujeira e violência histórica. Para
defendermos a justiça temos necessariamente que falar e denunciar as
injustiças. O passado está vivo e interpela o presente.
“Nem os mortos estarão seguros se o inimigo
vencer”[5],
alertava Walter Benjamin. Não basta criar cultura dos direitos humanos,
precisamos criar e construir condições materiais objetivas que viabilizem
relações sociais que garantam a efetivação dos Direitos Humanos. Quase 90% da
população brasileira está endividada. Uma pessoa endividada é uma pessoa
violentada, aprisionada e escravizada. O capitalismo é uma espécie de religião
sem perdão e sem piedade.
Novos modos de dominação estão
acontecendo a partir da uberização das relações de trabalho, dos algoritmos da
internet e da financeirização do capitalismo atual. Walter Benjamim afirmou: “a experiência de nossa geração: o
capitalismo não morrerá de morte natural” (BENJAMIN, 2006, p. 708).
Portanto, não podemos ficar esperando “melhorar a correção de forças”, como se
isso fosse possível se alterar automaticamente. Urge lutarmos aguerridamente de
forma coletiva por direitos socioambientais para construirmos uma correlação de
forças menos adversa e marcharmos para a superação do sistema do capital, que é
uma máquina de moer vidas.
Na sociedade capitalista que marcha para a barbárie
cotidianamente, revolucionário é puxar o freio da história, é avisar sobre o
incêndio que é iminente. Cabe recordar a função dupla do poder como violência
na instituição do Direito, conforme nos ensina Walter Benjamin. “A função do poder como violência na
instituição do Direito é dupla, na medida em que essa instituição se propõe ser
aquilo que se institui como Direito, como seu fim, usando a violência como
meio; mas, por outro lado, no momento da aplicação dos fins em vista como
Direito, a violência não abdica, mas transforma-se, num sentido rigoroso e
imediato, em poder instituinte do Direito, na medida em que estabelece como
Direito, em nome do poder político, não um fim livre e independente da violência,
mas um fim necessária e intimamente a ela ligado” (BENJAMIN, 2012, p. 77).
Enfim, urge levarmos a sério a profecia bíblica
do destemido profeta Miquéias: “Ai daqueles que planejam iniquidade e tramam
o mal em seus leitos! [...] Se cobiçam campos, eles os roubam, se casas, eles
as tomam; oprimem o varão e sua casa, o homem e sua herança” (Mq
2,1-2).
Em tempo: Após 18,4 anos do massacre de quatro fiscais do Ministério do Trabalho em Unaí, no noroeste de Minas Gerais, dia 24 de maio de 2022, iniciou o 2º julgamento de Antero Mânica, indiciado como um dos mandantes do massacre e condenado a 100 anos de prisão no primeiro julgamento em 2015, que foi anulado pelo pela 4ª Turma do Tribunal Federal da 1ª Região, em 2018. Basta de impunidade de mandantes de massacres, o que fomenta outros massacres![6] Justiça antes tarde do que nunca![7]
Referências
BENJAMIN,
Walter. O anjo da história.
Organização e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
______. Passagens. Organização da edição brasileira Willi Bolle. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
Obs.: As videorreportagens nos
links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 - Viúvas de Unaí
e auditoras fiscais: trabalho escravo, não! Prisão dos mandantes, sim! RJ,
23/02/16
2 - Marinês, viúva do fiscal Erastótenes, fala sobre o Massacre dos Fiscais em Unaí. 04/09/2013
3 - Chacina dos
fiscais em Unaí: Entrevista com a viúva do Ailton, Marlene e filha Rayanne.
18/01/2013
4 - Entrevista com
Helba, viúva de Nelson, 1 dos 4 fiscais matados em Unaí em 28/01/2004 -
07/01/2012
5 - Entrevista com
Calazans sobre o Massacre de 4 fiscais do MTE, em Unaí - 2a parte - 12/01/2012
6 - 8 anos do
massacre de 4 fiscais do MTE, em Unaí - Entrevista com Calazans - 1a parte -
12/01/2012
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor
da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no
SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros.
E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira
III
[2]Cf. voto do ministro Cernicchiaro
na decisão da 6ª Turma do STJ, dia
8 de abril de 1997, no Habeas Corpus nº 5574/SP 970010236-0.
[3] Voto do ministro Luiz Vicente
Cernicchiaro, disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/ita/documento/mediado/?num_registro=199700102360&dt_publicacao=18-08-1997&cod_tipo_documento=3&formato=PDF .
[4] Outras decisões no mesmo sentido
foram estudadas por Delze dos Santos LAUREANO no Livro “O MST e a Constituição – um sujeito histórico na luta pela Reforma
Agrária no Brasil”. São Paulo:
Expressão Popular, 2007.
[5] BENJAMIN, 2012, p. 12.
[6] Recordar para não esquecermos! http://gilvander.org.br/site/%ef%bb%bf28-01-2021-dia-nacional-de-combate-ao-trabalho-escravo-17-anos-do-massacre-dos-4-fiscais-do-ministerio-do-trabalho-em-unai-mg-17-anos-de-impunidade-ate-quando/
[7] Para não esquecermos, sugerimos
a leitura: http://gilvander.org.br/site/chacina-dos-fiscais-em-unai-nove-anos-depois-justica-a-vista/
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