Sem luta pela terra não se pode existir. Por frei Gilvander Moreira[1]
Edgar Kanaykõ, A luta pelo território é mãe de todas as lutas, 2017. Cortesia do artistaEm um país latifundiário como o
Brasil, com uma das maiores concentrações de propriedade fundiária do mundo, o
que causa uma brutal injustiça agrária, que sustenta injustiça social, urbana e
ambiental, é necessária a luta pela terra para democratizarmos o acesso à terra,
mas esta luta não pode ser feita com uma metodologia anacrônica, precisa estar
em sintonia com os desafios e complexidade da atualidade. Não pode ignorar a
historicidade de certas concepções. “A
burguesia revoluciona as relações de produção e passa a conquistar cada vez
mais espaços, a dominar a natureza através do conhecimento metódico, e converte
a ciência, que é um conhecimento intelectual, uma potência espiritual, em
potência material, por meio da indústria. Nesse quadro, surgem as cidades como
local determinante das relações sociais. Em lugar do que ocorria na Idade
Média, em que o campo determinava a cidade, a agricultura determinava a
indústria, na época moderna é a cidade que passa a determinar as relações no
campo e é a indústria que rege a agricultura” (SAVIANI, 2013, p. 82).
Dermeval Saviani tem razão ao pontuar
as mudanças, acima referidas, mas consideramos que o poder opressivo não está
apenas nas cidades em si e nem na indústria em si, mas no sistema do capital
que ancora na cidade e na indústria organizadas de forma capitalista – e
atualmente no capital financeiro – a trama opressiva que superexplora a classe
trabalhadora e expropria o campesinato.
A luta pela terra para ser pedagogia
de emancipação humana precisa aglutinar e construir uma unidade entre muitos
aspectos que são imprescindíveis e indissociáveis na construção do novo ser
humano e de uma sociedade para além do sistema do capital. Um desses aspectos é
a continuidade da luta pela terra e o zelo constante por todos os aspectos da
luta. Quando acontece a descontinuidade dos processos de formação de base e de
lideranças, deixam-se alguns aspectos atrofiados, vitórias parciais
conquistadas na luta pela terra são comprometidas e o que era avanço se torna
um retrocesso.
A experiência de luta pela terra, com
tudo que a envolve, atesta que a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e muitos outros Movimentos Sociais
Camponeses, como sujeitos que, ao lado de muitas outras forças vivas e rebeldes
da sociedade, estão tocando adiante algo de transformação social e de
emancipação humana, fazendo-se humano e sujeito social construindo História,
despertando o que há de melhor no sujeito humano. Nessa esteira, Roseli Caldart
defende que “educação como formação
humana na perspectiva da emancipação humana e da transformação social é o
desenvolvimento da consciência histórica: o saber-se parte de um processo que
não começa nem termina com cada pessoa, ou cada grupo humano, ou cada classe
social” (CALDART, 2012, p. 93). Para se emancipar humanamente não basta
‘desenvolver a consciência histórica’ reconhecendo-se parte de um processo
histórico e cultural, mas exige-se a construção de condições históricas
materiais que de fato promovam transformação na raiz maior geradora de ideias
mistificantes – ideológicas - que mais encobrem o real do que o revelam. Até
porque a experiência se dá em determinadas condições materiais objetivas que a
molda, conforme avalia Edward Thompson: “Experiência
foi, em última instância, gerada na vida material, foi estruturada em termos de
classe, e consequentemente o ser social determinou a consciência social”
(THOMPSON, 1981, p. 189).
Não se caminha rumo à
emancipação sem se pensar autenticamente, o que é perigoso. Reconhecemos a
diferenciação existente entre verdade e conhecimento. “Não existe conhecimento desinteressado” (SAVIANI, 2013, p. 8).
Conhecimento exprime relações de poder e dominação. Temos que buscar sempre
elucidar os conflitos, confrontos, antagonismos, que muitas vezes são
dissimulados nos discursos sobre a luta pela terra. A busca por pedagogia de
emancipação humana implica desmascarar muitas pedagogias que, travestidas de
pedagogias emancipatórias, são, de fato, pedagogias brutais e violentadoras,
conforme denuncia Miguel Arroyo referindo-se às lutas dos movimentos populares
camponeses: “As vítimas dessas brutais e
persistentes pedagogias ao afirmar-se presentes desocultam as pedagogias de
inferiorização, subalternização, que pretenderam destruir seus saberes,
valores, memórias, culturas, identidades coletivas” (ARROYO, 2012, p. 13).
Pela sua atuação coletiva, sua presença no meio dos camponeses injustiçados e
dos movimentos populares ou nas escolas e universidades, a CPT, o MST e outros
Movimentos Camponeses apresentam pela sua práxis outras pedagogias. “Reconhecer ou ignorar essas pedagogias de
libertação, emancipação passa a ser uma questão político-epistemológica para as
teorias pedagógicas” (ARROYO, 2012, p. 15). Isso passará pela desconstrução
de processos pedagógicos que, de forma tergiversada, decretam e constituem a
classe camponesa como inferior, inexistente, subalternizada. Pensar e fazer
e/ou fazer e pensar a luta pela terra para que seja pedagogia de emancipação
humana exige considerar “os elementos
materiais da formação humana” (ARROYO, 1991, p. 215). A luta pela terra
pode ser pensada como pedagogia de emancipação humana, pois pode criar relações
sociais que transformem o modo de produção capitalista superando-o e criando as
bases para um sistema de produção onde sejam superados dois grandes obstáculos:
a propriedade capitalista da terra e a divisão do trabalho que resulta em
superexploração dos trabalhadores através da extração permanente e ampliada de
mais-valia. “A sociedade contemporânea
assenta toda na exploração das amplas massas da classe operária por uma minoria
insignificante da população, pertencente às classes dos proprietários agrários
e dos capitalistas. Essa sociedade é escravista, pois os operários “livres”, que trabalham toda a vida para o
capital, só “têm direito” aos meios de subsistência que são necessários para manter os
escravos que produzem o lucro, para assegurar e perpetuar a escravidão
capitalista” (LÊNIN [1905], 2012, p. 1).
Enfim, a luta pela terra, enquanto pedagogia emancipatória, nos mostra que sem conquistarmos justiça agrária será impossível conquistarmos justiça social, urbana e ambiental e superarmos as brutais desigualdades econômicas, sociais, raciais, de gênero etc. Na injustiça agrária, por meio do aprisionamento da terra, está o tronco que sustenta todas as outras injustiças. Ou seja, enquanto perdurar no Brasil uma estrutura fundiária pautada no latifúndio, as classes camponesa e trabalhadora seguirão sendo superexploradas pelos capitalistas da cidade e do campo. E pior, toda a biodiversidade seguirá sendo devastada. Portanto, lutar pela democratização do acesso à terra se tornou uma necessidade para continuarmos existindo. Sem luta pela terra e sem resistência na terra, não existiremos.
Referência
ARROYO, Miguel. Outros
Sujeitos, Outras Pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2012.
CALDART,
Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 4ª Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
LÊNIN,
Vladimir Ilitch. O Socialismo e a Religião [1905]. In: site do PCB: Disponível em http://pcb.org.br/fdr/index.php?option=com_content&view=article&id=36:o-socialismo-e-a-religiao&catid=8:biblioteca-comunista
SAVIANI, Dermeval. Pedagogia
Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 11ª edição revista. Campinas,
SP: Autores Associados, 2013.
THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
29/11/2022
Obs.: As videorreportagens nos links,
abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 - Santana e João, casal exemplar no P.A Paulo Freire, em
Arinos, MG! Exemplo de luta pela terra! Vid 3
2 - De Riachinho/MG: Dona Antônia, 1ª professora do sertão do
Urucuia, e Sr. Vadu: uma história exemplar
3 - Horta Comunitária e Escola Indígena na Retomada Indígena
Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG: BELEZA!
4 - "Não aceitamos despejo nem mortos!" Povo da
Ocupação Fábio Alves no Barreiro, em BH/MG. Vídeo 5
5 - Com + de 600 casas, Povo da Ocupação Prof. Fábio Alves,
no Barreiro, BH/MG, jamais aceitará despejo
6 - Davi Kopenawa e Yanomami/Watoriki comemoram vitória de
Lula e reivindicam demandas urgentes-09/11/22
7 - STF proíbe despejo sem alternativa adequada e prévia -
Por frei Gilvander - 10/11/2022
8 - Mística Kamakã Mongoió e música indígena: final da
VII Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em
Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel
em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto
Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e
Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação
Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
Nenhum comentário:
Postar um comentário