Latifúndio: arma mortífera de exploração? Por Frei Gilvander Moreira[1]
A reflexão estimula o sem-terra, o sem-teto, o
atingido pela mineração devastadora, o negro, a pessoa vítima da homofobia e
todas as pessoas exploradas e/ou discriminadas a descobrir-se como oprimido,
superexpropriado pelo capital nas suas relações sociais no campo e na cidade, mas
também como ser com potencial para ser mais. No entanto, a reflexão precisar
ser feita em sintonia com o processo existencial de opressão vivenciado pelos
sem-terra, pelos sem-teto e todos os outros oprimidos e explorados. Mais do que
“convivência” com o regime opressor, trata-se se subserviência, de servidão
consentida e assimilada. O pedagogo Paulo Freire reconhece que não basta a
reflexão, mas é necessário ação; alerta, porém, que seja ação e reflexão, isto
é, práxis, que não é apenas ação, mas atuação dentro das condições materiais
objetivas, pensada a partir das contradições de classe e de todas as outras
facetas de opressão que se abatem sobre os sem-terra, os sem-teto e sobre toda
a classe camponesa e a classe trabalhadora. “Ação e reflexão, como unidade que não deve ser dicotomizada. [...] Ação
junto aos oprimidos tem de ser, no fundo, “ação cultural” para a liberdade, por
isto mesmo, ação com eles” (FREIRE, 2005, p. 60), jamais sobre, para ou por eles.
Há, sim, na luta pela terra e pela moradia um
potencial emancipatório da condição de camponês oprimido e da pessoa violentada
na sua dignidade na cidade no esforço de se libertar e, assim, transformar as
circunstâncias sociais das condições materiais, engajando-se na luta por
emancipação não só sua, mas de toda a classe trabalhadora e do campesinato.
Nesse sentido afirma Paulo Freire: “Quem
melhor que os oprimidos se encontrará preparado para entender o significado
terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá melhor que eles os efeitos da
opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da
libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua
busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela. Luta
que, pela finalidade que lhe derem os oprimidos, será um ato de amor, com o
qual se oporão ao desamor contido na violência dos opressores, até mesmo quando
esta se revista da falsa generosidade” (FREIRE, 2005, p. 34).
Parodiando Paulo Freire: Quem compreenderá a
crueldade terrível do latifúndio, da propriedade privada capitalista da terra e
do capital no campo melhor do que os sem-terra que adquirem coragem e se
engajam na luta pela terra? Quem sentirá no próprio corpo melhor que os
sem-terra a superexpropriação a que são submetidos? A luta pela terra desperta
nos Sem Terra a necessidade e a coragem de lutar de forma coletiva. Luta que
não é revanche e nem vingança, mas justiça, ato de amor aos latifundiários,
pois retira das mãos deles uma arma mortífera da exploração: o latifúndio. E,
na luta pela terra, os Sem Terra, ao transformar a estrutura fundiária em uma
estrutura social com equidade, podem ancorar lutas não apenas por emancipação
política, mas emancipação humana. A luta pela terra desmascara até a falsa
generosidade de pessoas ligadas à estrutura do capital.
A luta pela terra em busca de emancipação implica
fazer história, mas para fazer história os homens e as mulheres têm de estar em
condições de viver: satisfazer suas necessidades e se reproduzir. É o que Marx
e Engels explicam: “Para viver,
precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas
coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a
satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é,
sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que
ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora,
simplesmente para manter as pessoas vivas” (MARX; ENGELS, 2007, p. 33).
Pelo trabalho, o ser humano – homem e mulher –
produz os meios de vida própria e, no modo de produção capitalista, produz
principalmente para o alheio. O ser humano produz muitas mercadorias, no
entanto, não produz a terra. Por isso, a terra, embora esteja associada ao modo
de produção capitalista, não é capital, pois não é fruto do trabalho humano. “Assim, a terra não gera lucro, como o faz o
capital, mas sim renda” (OLIVEIRA, 2007, p. 63). Relações natural e social estão
presentes na produção e reprodução da vida desde a ação de procriar. “A produção da vida, tanto da própria, no
trabalho, quanto da alheia, na procriação, aparece desde já como uma relação
dupla – de um lado, como relação natural, de outro como relação social -,
social no sentido de que por ela se entende a cooperação de vários indivíduos,
sejam quais forem as condições, o modo e a finalidade” (MARX; ENGELS, 2007,
p. 34).
Um determinado modo de produção ou certo tipo de
crescimento industrial, com suas respectivas forças produtivas, condiciona as
relações sociais que se estabelecem entre as pessoas na sociedade. “Segue-se daí que um determinado modo de
produção ou uma determinada fase industrial estão sempre ligados a um
determinado modo de cooperação ou a uma determinada fase social – modo de
cooperação que é, ele próprio, uma “força produtiva” -, que a soma das forças
produtivas acessíveis ao homem condiciona o estado social e que, portanto, a
“história da humanidade” deve ser estudada e elaborada sempre em conexão com a
história da indústria e das trocas” (MARX; ENGELS, 2007, p. 34).
Somente após produzir em relações históricas o atendimento às suas necessidades básicas – alimentação, moradia, vestuário etc. -, o ser humano aparece como tendo consciência, mas, desde o início, não é consciência pura, pois está sempre condicionada pela matéria, por relações materiais. A linguagem nasce da necessidade de relação social e expressa a consciência, produto social forjado nas condições históricas objetivas. Enfim, pelo analisado acima, o latifúndio é, de fato, arma mortífera de exploração, porque aprisiona a terra em propriedade privada capitalista e, assim, cria as condições materiais objetivas para a reprodução da brutal injustiça social e desigualdade reinante no nosso país.
17/11/2021
Referências
FREIRE, Paulo. Pedagogia
do Oprimido. 47.ª edição. Rio de Janeiro: Edições Paz e Terra, 2005.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A
Ideologia Alemã: crítica da mais
recente Filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e
do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo:
Boitempo Editorial, 2007.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo
de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo:
Labur Edições, 2007. Disponível em http://www.geografia.fflch.usp.br/graduacao/apoio/Apoio/Apoio_Valeria/Pdf/Livro_ari.pdf
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - CPT-MG 40
anos - Madalena: "Nossa luta é contra o latifúndio, arma mortífera" -
Vídeo 5 - 07/3/2018
2 - Ameaçado
por lutar contra o latifúndio, DIM CABRAL, da Cooerco.SD, Uberlândia/MG.
Justiça! 24/5/18
3 - Violência
do latifúndio cresce no norte de MG/Audiência Pública/ALMG/Toninho do MST.
25/4/2018
4 - Latifundiários
perseguem agentes da CPT no Baixo Jequitinhonha, mas povo Sem Terra repudia.
10/06/16
5 - Marco
temporal: terra para os Povos Indígenas ou para o agronegócio devastador? Por
Frei Gilvander
6 - Você sabe
de onde vem a sua comida? O agronegócio envenena a comida do povo. Episódio 1 –
Greenpeace
7 -
"Libertar do agronegócio" (Jefferson/Sindieletro). Acampamentos do
MST/Campo do Meio/MG. Vídeo 7
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da
CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB
(Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
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