Riqueza e luxo à custa de trabalho alheio? Por Frei Gilvander Moreira[1]
Em
contexto de superexploração da dignidade humana dos/as trabalhadores/as e dos
camponeses e camponesas, não podemos abrir mão da utopia que é conquistar
emancipação humana. Parece à primeira vista impossível, mas é possível, urgente
e necessário, antes que a barbárie que o capitalismo e todos seus agentes e
vassalos reproduzem cotidianamente levem à dizimação da humanidade por mudanças
climáticas causadas pela destruição das condições materiais objetivas que
garantam a vida dos humanos e de todos os seres vivos da biodiversidade. Refletindo
sobre a emancipação humana, que precisa acontecer, Marx afirma na Crítica do programa de Gotha: “Quando tiver sido eliminada a subordinação
escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre
trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio
de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com
o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também
tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância,
apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente
superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: “De cada um segundo
suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!” (MARX, 2012, p.
33).
Ao tecer
críticas ferrenhas ao programa de coalizão de dois partidos operários
socialistas alemães, em 1875, tal como, programa “absolutamente nefasto e
desmoralizador para o partido” (MARX, 2012, p. 22), Marx enfatiza a dimensão
ecológica ao afirmar a natureza como a fonte primeira de toda riqueza, conditio sine qua non para o ser humano, através do trabalho gerar riqueza.
“O trabalho não é a fonte de toda
riqueza. A natureza é a fonte dos valores de uso (e é em tais valores que
consiste propriamente a riqueza material!), tanto quanto o é o trabalho, que é
apenas a exteriorização de uma força natural, da força de trabalho humana”
(MARX, 2012, p. 24).
Em
sintonia com o que advoga o apóstolo Paulo, na Bíblia, na carta aos
tessalonicenses – “Quem não quer
trabalhar também não há de comer” (2 Tessalonicenses 3,10) -, Marx pondera
que a emancipação humana passa necessariamente pela não apropriação de riqueza
enquanto fruto de trabalho alheio. “Porque
o trabalho é a fonte de toda a riqueza, ninguém na sociedade pode apropriar
riqueza que não seja fruto do trabalho. Se, portanto, ele mesmo não trabalha,
então vive do trabalho alheio e apropria sua cultura também à custa do trabalho
alheio” (MARX, 2012, p. 25). Exceção óbvia às pessoas impossibilitadas de
trabalhar por motivo de doença, deficiência ou por estar com idade avançada. A
esses também segundo suas necessidades e segundo sua história de trabalho e/ou
de alguma forma gerando sociabilidade justa. “O fruto do trabalho pertence inteiramente, com igual direito, a todos
os membros da sociedade” (MARX, 2012, p. 28).
Os frutos
do trabalho - o trabalho social integral - devem ser distribuídos a todos, com
igual direito, após deduzir os recursos para a substituição dos meios de
produção consumidos, a parte adicional para a expansão da produção, um fundo de
reserva ou segurança contra acidentes, prejuízos causados por fenômenos
naturais etc. Após essas deduções, a parte restante do produto total deve ser
destinada ao consumo, sem esquecer o que serve à satisfação das necessidades
coletivas, como escolas, serviços de saúde, etc. (Cf. MARX, 2012, p. 29). “É a ‘classe trabalhadora’ que tem de
libertar – o quê? – ‘o trabalho’” (MARX, 2012, p. 34).
Se “a burguesia se desenvolveu dentro da ordem
feudal, mas fora do eixo central da relação senhores feudais/servos dos quais a
classe dominante extraía sua fonte principal de riqueza” (IASI, 2011, p.
97) – concordamos que provavelmente foi assim que se deu historicamente -, é
provável que a classe revolucionária que guiará o processo de emancipação
humana para uma sociedade para além do capitalismo e do capital, não será
composta pelo proletariado, classe presa à própria relação fundamental do
capital/trabalho - proprietários dos meios de produção/trabalhadores
assalariados -, mas poderá ser a classe camponesa - o campesinato na sua imensa
pluralidade de expressões - e todas as trabalhadoras e todos os trabalhadores
que sobrevivem injustiçados à margem do eixo central do sistema do capital:
indígenas, quilombolas, sem-teto e todos os injustiçados por motivos de gênero,
etnia, orientação sexual etc.
A forma como a sociedade em geral e a classe
dominante, em particular, veem os Movimentos Populares, condiciona, pelo menos
em parte, como os Movimentos Populares se veem. Parafraseando Arroyo, podemos
dizer: para o êxito dos Movimentos Populares do campo e da cidade é
imprescindível reconhecer a centralidade e a força matriz da luta pela terra,
pelo território, com todas suas raízes culturais e religiosas. A terra, ao
longo da história, tem sido âncora de sustentação dos movimentos de luta por
emancipação. O trabalho coletivo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) irradia a centralidade da luta pela
terra, que é disputada pelo poder do capital. Enquanto perdurar o cativeiro da
terra na brutal injustiça agrária pautada no latifúndio, que viabiliza o
agronegócio com uso indiscriminado de agrotóxicos, em latifúndios de
monoculturas e muitas vezes com trabalho análogo à situação de escravidão, o
trabalho alheio continuará sendo sugado para o enriquecimento da classe dominante.
Enfim, urge superarmos a lógica e as relações
sociais que promovem riqueza
e luxo para uma minoria à custa do trabalho alheio, ou seja, os/as
trabalhadores/as trabalhando e produzindo não para si mesmos, mas para os patrões.
Isto é a negação da utopia bíblica de “novos céus e nova terra” profetizada
pelos discípulos e discípulas do grande profeta Isaías ao bradar: “Construirão casas e nelas habitarão, plantarão
vinhas e comerão seus frutos. Ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará
para outro comer, porque a vida do meu povo será longa como a das árvores, meus
escolhidos poderão gastar o que suas mãos fabricarem ...” (Isaías
65,21-22). Que tenhamos a graça e a fibra de seguirmos lutando para a
construção desta utopia: uma sociedade com pessoas livres, sem opressões, sem
explorados e sem exploradores, respeitando os direitos da natureza, inclusive.
04/11/2021
Referências
IASI,
Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e
emancipação. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - Frei Carlos
Mesters, Paulo Freire da Bíblia - Por frei Gilvander - 1º/11/2021
2 - Mineradora
Vale S/A insiste em obter Licenciamento para devastar a Serra da Gandarela tb.
Por Teca
3 - Plano
Urbanístico da Ocupação Cidade de Deus de Sete Lagoas, MG: UMA MARAVILHA! Vídeo
3 - 29/09/2021
4 - "Absurdo
fábrica de cerveja Heineken em Pedro Leopoldo/MG, no Sítio Arqueológico da
Luzia" (Alenice)
5 - Chaves de
leitura do livro de Josué: Partilha da terra - Mês da Bíblia 2022. Por Ildo
Bohn e CEBI/MG
6 - Noite Cultural 34ª Romaria
de Canudos, BA: Viva Antônio Conselheiro e as lutas populares! - 23/10/21
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da
CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB
(Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
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