PARECER do Prof. Dr. José Luiz Quadros de Magalhães sobre
as decisões judiciais que mandam despejar cerca de 8 mil famílias nas Ocupações
Rosa Leão, Esperança e Vitória, na Região do Isidoro, em Belo Horizonte e Santa
Luzia, MG.
PARECER
DIREITO À MORADIA COMO DIREITO HUMANO E FUNDAMENTAL.
IMPOSSIBILIDADE DE DESPEJO DE MILHARES DE FAMÍLIAS SEM ALTERNATIVA DE MORADIA
DIGNA. NÃO SUBORDINAÇÃO DO DIREITO À VIDA DIGNA AO DIREITO DE PROPRIEDADE.
SOBRE A INCONSTITUCIONALIDADE, ILEGALIDADE E IMORALIDADE DA DECISÃO DE DESPEJO
DE MAIS DE OITO MIL FAMILIAS.
Consulente: Moradores das
Ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória.
Parecerista: José Luiz Quadros de
Magalhães[1]
1- DA CONSULTA
Os moradores das Ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória fazem uma
consulta sobre a ameaça de despejo de mais de 8.000 (oito mil famílias) por
decisão flagrantemente ilegal e inconstitucional da Juíza de Direito Luzia
Divina Peixoto, nos autos de reintegração de posse de número 0024.13.242.724-6,
0024.13.313.504-6. 0024.13.304.260-6 e 0024.13.297.889-1, em trâmite na 6ª Vara
da Fazenda Pública Municipal de Belo Horizonte.
De acordo com os consulentes, além da flagrante inconstitucionalidade da
decisão de despejo, outras ilegalidades e inconstitucionalidades estão
presentes no processo, pela inobservância do princípio da igualdade perante a
lei, e dos princípios processuais constitucionais da ampla defesa e do
contraditório, princípios estes que se desdobram na lei processual federal que
assegura igualdade de tratamento às partes. A Juíza do processo vem
dificultando a defesa e o acesso aos autos para a Defensoria Pública e o
Ministério Público de Minas Gerais
Diante dos fatos narrados, a consulente questiona sobre a legalidade e a
constitucionalidade da decisão e sobre o direito dos moradores, pessoas
portadoras de direitos constitucionais, com direitos iguais assegurados pela
Constituição, à moradia, à dignidade, à segurança e integridade física e moral.
2 - DO DIREITO
São várias as obras e
autores no campo do Direito que estudam a questão dos princípios e regras
constitucionais. A questão em análise não poderia implicar em dificuldade de
compreensão ou interpretações divergentes diante dos princípios que se
densificam diante do caso concreto, em análise, em direitos constitucionais
fundamentais. No caso, estamos diante de direitos que decorrem de princípios
constitucionais fundamentais como a dignidade da pessoa; a integridade física e
moral; a segurança; a vida; a liberdade; a moradia, e outros destes decorrentes.
São mais de 8.000 famílias, milhares de pessoas portadoras destes direitos
inalienáveis que serão prejudicadas e terão seus direitos violados com esta
decisão incompreensível, e que de tamanho o absurdo, é também imoral.
Como mencionamos, vários são
os autores, que a partir de teorias construídas sobre a relação entre
princípios e regras nos mostram a solução para o caso. Dworkin, Habermas,
Alexy, e, no Brasil, um grande número de teóricos do Direito e
constitucionalistas como o atual Ministro do STF Luis Roberto Barroso, se
dedicam ao estudo do neo-constitucionalismo e a questão dos princípios.
A Constituição brasileira
de 1988 contém tipos distintos de normas jurídicas como as regras, os
princípios setoriais e os princípios fundamentais expressos e princípios e
normas deduzidas a partir da interpretação sistêmica do seu texto, sempre
diante do caso concreto.
Ao aplicar qualquer norma
jurídica infraconstitucional (uma regra do Código de Processo, por exemplo), o
interprete das normas que regulam o caso concreto, que irá construir uma norma
para o caso (a decisão de um juiz no processo por exemplo), deve partir sempre
da complexidade de cada caso. A decisão judicial é uma norma para o caso
concreto, construída pelo Juiz, levando em consideração toda a complexidade
deste caso e todas as normas que o regulam, ou seja, as regras
infraconstitucionais, as regras constitucionais e os princípios expressos e
deduzidos do texto constitucional. Toda lei só pode ser aplicada em consonância
com a Constituição, que por sua vez só pode ser compreendida como um sistema.
Assim, ao aplicar uma
regra infraconstitucional (uma regra do Código de Processo, por exemplo), o
interprete deverá cuidar para que a sua aplicação não seja contrária ao texto
constitucional e não viole nenhum direito constitucional. Neste sentido, uma
lei, que em abstrato é constitucional, pode, diante da complexidade do caso,
ter uma aplicação inconstitucional. A lei e a Constituição têm uma finalidade,
e sua aplicação fora desta finalidade também é inconstitucional.
Por este motivo, muitos
constitucionalistas e teóricos do direito têm dedicado muitas e muitas páginas,
livros, artigos, teses e dissertações sobre a interpretação e aplicação do
direito. Aplicar o direito ao caso concreto não é uma operação simples. Para
aplicar o direito é necessário interpretá-lo, e a sua interpretação deve
compreender o direito como um sistema integrado e coerente de normas
(princípios e regras) que serão adequadas, sempre, ao caso concreto. Daí que
para cada caso, haverá uma norma construída a partir do sistema jurídico
constitucional.
O jurista Ronald Dworkin
desenvolveu uma ideia que é muito importante para entendermos melhor o processo
de construção da norma (da decisão judicial) para o caso concreto. Em sua teoria,
ele menciona a ideia da “integridade” do direito, que deve ser mantida quando
da decisão judicial.
Podemos entender a
integridade de duas maneiras: a “integridade” como a coerência sistêmica do
ordenamento jurídico e o respeito a sua totalidade; e “integridade” enquanto
coerência histórica, quando então, em cada decisão, cada juiz escreve um novo
capítulo de um romance em cadeia, que guarda coerência com o capítulo anterior,
e evolui e se transforma a partir deste processo histórico. Assim, um juiz não
vai inventar um conceito de um princípio do nada, mas pode fazer evoluir a
compreensão deste princípio guardando coerência com a história e as decisões
anteriores frente às transformações sociais.
Decorre desta compreensão
que o Juiz, ao construir a decisão para o caso concreto não pode escolher uma
regra em detrimento de outra segundo sua vontade e seus valores pessoais. Isto
seria a mais completa insegurança jurídica. A sua decisão deve ser a que guarda
a integridade de todo o sistema. Assim, não haveria escolha entre o direito de
propriedade e o direito à vida, a integridade física e moral; à moradia; à
segurança. Todos devem ser respeitados. Acontece, que diante do caso concreto,
este sistema integral pode tencionar-se. Ou seja, se em abstrato dizemos que
propriedade, vida, segurança, dignidade e outros devem ser respeitados
simultaneamente, diante de situações complexas da vida, muitas vezes estes
princípios entrarão em conflito.
Como solucionar este
conflito? O conflito entre regras é de fácil solução. As regras regulam
situações específicas. O seu grau de abrangência é menor. Não podem existir
duas regras regulando a mesma situação: assim a regra posterior revoga a
anterior, a específica prevalece sobre a genérica, e a hierarquicamente
superior prevalece sobre a inferior. Já entre os princípios não é assim. Os
princípios são normas com um grau de abrangência muito maior, eles regulam
diversas situações simultaneamente, e diversos princípios se aplicam à mesma
situação. Este é o caso.
Na situação em tela, qual será a única decisão possível que preserve o
sistema jurídico constitucional em sua integridade, ou seja: preserve a vida, a
integridade física e moral destas mais de 8.000 famílias; preserve o seu
direito de moradia, de dignidade, e ao mesmo tempo preserve o direito de
propriedade?
Certamente, uma decisão
absolutamente inconstitucional, que destrói a integridade do Direito é a que
implica nos despejos. Esta não tem nenhuma sustentação lógica constitucional
além de ser imoral. Uma decisão deste teor deve gerar a responsabilização
criminal do Juiz que a proferir.
Supondo que haja ainda um
direito de propriedade a ser garantido, pois o direito deve ser exercido para
que seja protegido, a única solução possível, que mantenha a integridade do
sistema deve ser a que mantenha estas pessoas nos espaços e moradias que
atualmente ocupam e se desaproprie a área pagando a indenização devida, caso
contrário, estas pessoas só poderiam sair diante de uma negociação (jamais com
o uso da força por tudo que foi explicado) onde lhes seja garantida moradia com
dignidade e respeito, e sempre, a sua integridade física e moral.
Não há justificativa possível, para o direito constitucional, a
violação de princípios dos quais decorrem direitos fundamentais como a vida; a
segurança; a integridade física e moral; a moradia, de mais de oito mil
famílias (8.000) para se garantir um suposto direito de propriedade.
Além de todo o exposto, a
análise do processo aponta uma série de ilegalidades e inconstitucionalidades,
decorrentes da inobservância dos princípios processuais constitucionais da
ampla defesa, do devido processo legal e do contraditório. Essas ilegalidades
foram arguidas pela Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, em Agravo
negado por dois desembargadores; pelo Ministério Público em Ação Civil Pública
impetrada na 2ª Vara de Fazenda Pública Estadual, dia 15 de julho de 2014, ação
ainda não julgada; em exceção de suspeição da juíza, recurso não julgado também
ainda; e em Mandado de Segurança. E deverão ser arguidos em outros recursos
judiciais ainda cabíveis.
CONCLUSÃO
Por todo o exposto, é o presente parecer pela inconstitucionalidade da
retirada dos moradores (8.000 famílias) das ocupações Rosa Leão, Esperança e
Vitória, pois isto implicará na grave violação de princípios e direitos
constitucionais fundamentais destes decorrentes.
É o parecer.
Belo Horizonte, 10 de Agosto de
2014.
José Luiz Quadros de Magalhães
[1] Possui
graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1986),
graduação em Língua e Literatura Francesa pela Universidade Nancy II (1983),
mestrado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991) e
doutorado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1996).
Atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, professor associado da Universidade Federal de Minas Gerais e professor
do programa de mestrado da Faculdade de Direito do Sul de Minas. É coordenador
de projeto do programa Pólos de Cidadania da UFMG e coordenador regional
(região sudeste - Brasil) da Rede pelo Constitucionalismo democrático latino
americano. Professor visitante no mestrado em filosofia da Universidad Libre de
Bogotá; do doutorado da Faculdade de Direito da Universidad de Buenos Aires;
foi professor visitante na Universidad de la Habana (Cuba) e pesquisador na
Universidad Nacional Autónoma de México. Tem diversos livros e artigos
científicos e jornalísticos publicados. Tem experiência na área de Direito, com
ênfase em Direito Constitucional, Internacional, Teoria do Estado e da
Constituição, atuando principalmente nos seguintes temas: plurinacionalidade,
diversidade, democracia, federalismo, direitos humanos, poder, ideologia e
constituição.
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