quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Teoria prática e prática teórica, em movimento: eis o caminho! Por frei Gilvander

Teoria prática e prática teórica, em movimento: eis o caminho! Por frei Gilvander Moreira[1]

(Con)vivemos em meio a uma contradição social, fruto de uma organização social heterônoma e desigual, em uma sociedade capitalista que idolatra o mercado e a acumulação de capital à custa do sangue da maioria do povo. É praticamente impossível alguém existir na sociedade atual realmente conforme suas próprias determinações, sendo um anarquista radical, pois irá encontrar inúmeras barreiras impostas por outros que moldam e ditam o que se torna dominante.

Na luta pela terra, por território, por moradia e outros direitos socioambientais vários conceitos são constituídos pelos Sem Terra, Sem Teto, Indígenas, tais como: cumplicidade na luta, Sem Terra, Sem Teto, militante, lutador/a etc. Esses conceitos expressam a ‘fina flor’ da luta pela terra, por território e por moradia enquanto pedagogia emancipatória. ‘Cumplicidade na luta’ se refere à concepção segundo a qual o êxito ou o fracasso da luta depende de todos/as e não apenas das lideranças. Pela ‘cumplicidade na luta’ desenvolve-se a corresponsabilidade e a noção que diz “se mexer com qualquer Sem Terra, Sem Teto, Indígena, Quilombola etc., mexe comigo” ou a ideia de que as vitórias dependem da dedicação e do empenho de todas/os nas tarefas que lhe são designadas. “Sem Terra” se refere ao sem-terra que não é um mero expropriado e explorado, mas se tornou um sujeito protagonista na luta pela terra, aquele que defende nas lutas coletivas o seu direito à terra, mas nunca deixa de ser solidário com quem foi expropriado da terra e ainda não se engajou na luta por ela. Sem Teto, da mesma forma. ‘Militante’ se refere àquele/a para quem o sentido da vida não está apenas em participar do que foi instituído pela classe dominante mentora e reprodutora do sistema do capital, mas em transformar o que está aí como dado, revolucionando-o; é fazer a história com as próprias mãos. ‘Lutador/a’ se refere a quem está doando a própria vida na luta por direitos humanos fundamentais.

O engajamento dos sem-terra e dos sem-teto na luta pela terra e a perseverança na luta estão ligados diretamente ao tamanho e à qualidade do apoio e do acompanhamento recebido. As/os militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e muitos outros movimentos sociais, as/os agentes de pastoral da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o povo das ocupações sempre reconhecem que é graças ao apoio e acompanhamento experimentados como algo concreto que se mobilizam as pessoas para a luta coletiva por direitos e para a perseverança na luta.

Inspira-nos na reflexão teórica sobre luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana o pensador cubano Ovidio D’Angelo Hernández, que analisa a íntima relação existente entre autonomia integradora e transformação social, um desafio ético emancipatório da complexidade. Hernández advoga a construção de uma autonomia integradora, que é diferente de autonomia segundo o iluminismo, pois não se trata apenas de esclarecimento de consciência. Hernández delineia uma práxis teórica emancipatória latino-americana que passa pela pesquisa-ação participativa como método e inclui a articulação entre os processos micro e macro de transformação social. Busca-se integrar saberes buscando a construção de um pensamento alternativo ao pensamento único colonizador e neoliberal. Hernández faz distinção entre transformação e autotransformação social, o que é enfatizado pelo papel proativo e autorreferente dos próprios sujeitos sociais.

Na América Afro-Latíndia estamos diante da emergência de novas epistemes, novas formas de conhecimento, tais como as que são exercitadas na Filosofia da Libertação, na Teologia da Libertação, na Pedagogia da Libertação e em muitos outros conhecimentos que são construídos com base na luta coletiva dos/as injustiçados/as. A pedagogia de emancipação humana, por exemplo, aposta na educação popular como uma ferramenta fundamental de transformação social e cultural. Isso é feito muito mais fora da escola do que na escola, mais nas lutas coletivas pela terra, por território, por moradia e por todos os outros direitos sociais do que em processos de educação formal que “se parece mais com uma forma de adestramento, disciplinarização, treinamento e docilização dos indivíduos, do que como meio de transformação e de revolução social”, afirma Paulino José Orso (ORSO, 2008, p. 51).

Para a pedagogia de emancipação humana não há separação entre teoria e prática, mas há teoria prática e prática teórica, em movimento, na contradição e na dialógica. Da mesma forma que não faz sentido separar o jovem Marx do velho Marx, o primeiro e o segundo Foucault, ou os diversos momentos da obra de Paulo Freire, devemos olhar a obra dos/as pensadores/as no seu conjunto e interpretá-la à luz das intenções fundamentais, dentro do movimento dialético e contraditório da realidade.

Para Ovídeo Hernández o conceito ‘conscientização’ “designa un proceso de acción cultural y sociopolítica en el que se involucran hombres y mujeres “para transformar la realidad y transformarse a si mismos” [...], se trata – según palabras de Freire en su libro Acción cultural para la libertad – de un proceso continuo que implica una praxis, en el sentido de la relación dialéctica entre acción y reflexión [...] que implica una inserción crítica en la historia (HERNÁNDEZ, 2005, p. 17).

Portanto, no próximo período desafiador para o povo brasileiro, urge aprimorarmos compromisso com as lutas sociotransformadoras articulando de forma emancipatória teoria prática e prática teórica, em movimento, na contradição e na dialógica. Eis o caminho para fazermos a história com nossas próprias mãos.

 

Referência

HERNÁNDEZ, Ovidio S. D’Angelo. Autonomía integradora y transformación social: El desafío ético emancipatorio de la complejidadLa Habana: Publicaciones Acuario Centro Félix Varela, 2005.

SANTOS, Ariovaldo. Mundialização, educação e emancipação humana. In: ORSO, Paulino José; GONÇALVES, Sebastião Rodrigues; MATTOS, Valci Maria (Orgs.). Educação e lutas de classes. São Paulo: Expressão Popular, p. 39-47, 2008.

29/12/2022

 Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Frei Carlos Mesters: CF/22 -Fraternidade e Educação. “Fala com sabedoria, ensina com amor”(Pr 31,26)

2 - “Arborizemos nosso ambiente! Educação ambiental e práxis ecológica” (Rosimeire Maria, de Arinos, MG)

3 - Frei Gilvander no Ato Interreligioso da Educação. Educação que liberta. Sind-UTE/MG, BH/MG - Vídeo 2

4 - Ato Interreligioso da Educação: Valorização e Educação que liberta e humaniza. Sind-UTE/MG, BH

5 - Frei Gilvander X Seguranças da Vale S/A e Educação Indígena Xukuru-Kariri, em Brumadinho/MG. Vídeo 7

6 - P.A Terra Prometida do MST em Felisburgo/MG produz alimentos saudáveis e Educação do Campo. Vídeo 3

7 - Frei Gilvander apoia greve dos trabalhadores e trabalhadoras em Educação de Betim, MG 12 2 2020


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III 

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Esperar lutando: eis o caminho! Por frei Gilvander

 Esperar lutando: eis o caminho! Por frei Gilvander Moreira[1]

A pedra de toque da pedagogia da luta pela terra, por moradia, por território e por outros direitos humanos fundamentais é o diálogo, que é uma relação horizontal entre pessoas – relação ‘eu-tu’ e não ‘eu-isso’ -, respeitadas como sujeitos, autônomas e com dignidade próprias. No fluir de palavras, experiências e ideias, no diálogo, melhor dizendo, no ‘pluriálogo’, a luta pela terra, por moradia adequada, por território etc. é construída e realizada processualmente, de forma permanente.

Assim, na luta coletiva por direitos acontece uma mudança na forma de conceber a história. Passa-se de uma compreensão linear, positivista e idealista, na qual a ideologia dominante reproduz as relações sociais de superexploração, para uma compreensão materialista histórico-dialético da realidade. A compreensão positivista abre espaço para a afirmação do ‘fim da história’, como se estivesse fadado a ser o futuro apenas uma repetição do presente e este uma mera repetição do passado.  Diferentemente, a concepção materialista e dialética da história introduz a possibilidade de superação das relações sociais de exploração e abre caminho para a afirmação de que a história não acabou, está em aberto e, consequentemente, podemos fazê-la no sentido de produzir transformações e mudanças que alterem para melhor – com ética e justiça - o que está dado. Isso acontece de alguma forma em níveis variados na luta pela terra, por moradia e por território como algo que fomenta processos emancipatórios. E essa compreensão, segundo Paulo Freire, não seria possível sem a utopia. “Na verdade toda vez que o futuro seja considerado como um pré-dado, ora porque seja a pura repetição mecânica do presente [...], ora porque seja o que teria de ser, não há lugar para a utopia, portanto para o sonho, para a opção, para a decisão, para a espera na luta... Não há lugar para a educação. Só para o adestramento” (FREIRE, 2009, p. 92).

A luta pela terra, por moradia, por território e por outros direitos, realizada de forma coletiva, é uma forma de dar vazão, de forma organizada e canalizada, à indignação sentida no próprio corpo do camponês expropriado da terra, do sem-casa sacrificado pela cruz do aluguel (especulação imobiliária) ou pela humilhação que é sobreviver de favor, do parente indígena ou dos outros Povos e Comunidades Tradicionais desterritorializados, e exprimir o inconformismo e a rebeldia. Boaventura de Sousa Santos advoga isso para uma educação emancipatória: “Educação, pois, para o inconformismo, para um tipo de subjetividade que submete a uma hermenêutica de suspeita a repetição do presente, que recusa a trivialização do sofrimento e da opressão” (SANTOS; MENESES, 2010, p. 19). Em uma sociedade estruturalmente desigual não interessa uma educação escolar e uma ‘escola da vida’ que desencadeie o processo de inconformismo, mas, ao contrário, interessa adestrar e domesticar seres humanos para ser mera força de trabalho, máquinas vivas que funcionam a engrenagem do sistema do capital. A luta pela terra educa enquanto educação extraescolar e mais do que na ‘escola da vida’, pois educa na luta coletiva por direitos.

As compreensões teóricas positivistas e idealistas, compreensões veiculadas pela ideologia dominante – ideias da classe dominante -, inibem a luta pela terra, por moradia e por território enquanto pedagogia de emancipação humana. Por mais exploração que a pessoa humana sofra, ela não perde completamente a capacidade de se recriar. Assim, faz diferença quando a luta por direitos é impulsionada por compreensões teóricas do materialismo histórico-dialético, porque isso poderá ser um facilitador para desencadear práticas emancipatórias e não voltar a reproduzir o sistema do capital após as primeiras conquistas.

Referindo-se ao movimento do conhecimento, à dialética freiriana, Paulo Freire pondera: [...] a toda compreensão de algo corresponde, cedo ou tarde, uma ação. Captado um desafio, compreendido, admitidas as hipóteses de resposta, a pessoa humana age. A natureza da ação corresponde à natureza da compreensão. Se a compreensão é crítica, ou preponderantemente crítica, a ação também o será. Se é mágica a compreensão, mágica será a ação” (FREIRE, 2002, p. 114).

Óbvio que o resultado depende do ser social, ou seja, para mudar é preciso mudar as condições materiais objetivas e não apenas a consciência. Não basta conscientizar. Não podemos admitir a perspectiva que afirma o ser existente como se fosse algo quase mecânico, determinado, que fosse dado como causa e efeito. Assim, recairíamos no determinismo. A realidade é complexa e envolve aspectos que muitas vezes alteram o curso da história. Concordamos com Paulo Freire em que possa ocorrer uma tendência, mas não como algo inexorável. Muitas vezes as ações estão em consonância com o que a pessoa pensa teoricamente, mas outras vezes, não. O que Freire sugere exige que a pessoa tenha compreensão crítica emancipatória em todas as dimensões da vida: politicamente, economicamente, socialmente, em questão de gênero, ecologicamente, religiosamente etc.

Paulo Freire alerta-nos que encontramos três tipos de consciência nas pessoas e as distingue como consciência ingênua, mágica e crítica (Cf. FREIRE, 2002, p. 113-114) e há pessoas que não vão à luta e outras que se engajam na luta por direito à terra, à moradia e pelo território. Em nível de conhecimento, às vezes, a pessoa se diz crítica com postura dialético-marxista politicamente, mas é neoliberal economicamente e fundamentalista religiosamente. Não apenas há diferença de consciência entre as pessoas, mas também nas pessoas em si mesmas. Para o processo de emancipação humana um grande desafio é despertar e promover prática e compreensão materialista histórico-dialética sob todos os aspectos que envolvem a convivência humana. Não pode, por exemplo, quem está na luta pela terra ser homofóbico ou quem milita no movimento LGBTTQI+ discriminar quem está na luta pela terra ou ser racista.

Assim, pode-se falar da chama acesa da esperança que brota e/ou reacende na luta coletiva dos oprimidos, injustiçados e todas as pessoas de boa vontade, como opção ética e humanística de lutar por terra, território, moradia, trabalho; por direitos fundamentais; por vida digna e por liberdade; com coerência, determinação e coragem.

Referência

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 16ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.

Idem. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Cortez Editora, 2010.

13/12/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Dom Vicente: “Mineração em Brumadinho, MG e Brasil, matando crianças com metais pesados no sangue"

2 - Santana e João, casal exemplar no P.A Paulo Freire, em Arinos, MG! Exemplo de luta pela terra! Vid 3

3 - De Riachinho/MG: Dona Antônia, 1ª professora do sertão do Urucuia, e Sr. Vadu: uma história exemplar

4 - Horta Comunitária e Escola Indígena na Retomada Indígena Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG: BELEZA!

5 - "Não aceitamos despejo nem mortos!" Povo da Ocupação Fábio Alves no Barreiro, em BH/MG. Vídeo 5

6 - Com + de 600 casas, Povo da Ocupação Prof. Fábio Alves, no Barreiro, BH/MG, jamais aceitará despejo

7 - Davi Kopenawa e Yanomami/Watoriki comemoram vitória de Lula e reivindicam demandas urgentes-09/11/22

8 - STF proíbe despejo sem alternativa adequada e prévia - Por frei Gilvander - 10/11/2022

9 - Mística Kamakã Mongoió e música indígena: final da VII Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG

10 - Despejo é violência, destrói casas, história e sonhos Ocupação Novo Horizonte/Ribeirão das Neves/MG

11 - Trajetória apaixonante do Povo Indígena Kamakã Mongoió até Retomada de Território em Brumadinho/MG

12 - "A Vale matou meu irmão. Todo mundo em Brumadinho está doente por causa da Vale" (Paré, do Tejuco)

13 - Frei Gilvander: "A Vale S/A está fazendo guerra contra a mãe terra, as águas, os povos e todo o ..."


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Luta por direitos faz nascer esperança. Por frei Gilvander

  Luta por direitos faz nascer esperança. Por frei Gilvander Moreira[1]


Na esteira da pedagogia de Paulo Freire, os Sem Terra, os Sem Casa, os Indígenas desterritorializados, os Quilombolas etc., na luta pela terra e pelo território, criam e constroem saberes no calor da vivência existencial dessa luta por direitos fundamentais. Educa-se na luta por direitos. Por isso, dizemos que a experiência da luta pela terra e pelos outros direitos educa e emancipa. “Se há saber que só se incorpora ao homem experimentalmente, existencialmente, este é o saber democrático. Saber que pretendemos, às vezes, os brasileiros, na insistência de nossas tendências verbalistas, transferir ao povo nocionalmente” (FREIRE, 2002, p. 100). A Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e muitos outros movimentos sociais camponeses buscam sempre aprender com as lutas camponesas e revolucionárias do passado, mas também busca constantemente aprender com os erros de lutas do passado, lutas que pretendiam ser emancipatórias.

Ao longo de várias décadas, a esquerda latino-americana cometeu vários erros políticos e hermenêuticos graves. Marta Harnecker, pensadora latino-americana, aponta vários erros cometidos por essa esquerda: a) o vanguardismo, que leva a messianismos (salvadores da pátria) e a grupos iluminados; b) o verticalismo e o autoritarismo, que não constrói sujeitos emancipados e emancipatórios e nega um princípio da luta popular que diz que é melhor dar um passo com mil companheiros que dar mil passos sozinho; c) copiar modelos de outros países, o que fez, por exemplo, considerar o cristianismo como ópio do povo. Isso na América Latina fez ignorar a participação importantíssima de muitas pessoas cristãs nos processos revolucionários pela Teologia da Libertação (padre Camilo Torres, na Colômbia e Mariátegui, no Peru, por exemplo) e a ignorar a presença e o protagonismo dos povos indígenas na Bolívia, por exemplo; d) o teoricismo, o dogmatismo e o estrategismo, que ignorou um ensinamento básico de Lênin o qual dizia que devemos partir sempre das necessidades elementares e fundamentais do povo;[2] e) o subjetivismo que gera falsa visão da realidade e muitas vezes impõe um autoengano; f) a concepção de revolução como assalto ao poder que levou à crença de que uma minoria fará as transformações necessárias;[3] g) a desvalorização da democracia, batendo na tecla de que o que importa é estabelecer a ‘ditadura do proletariado’; h) o emprego de uma linguagem inadequada, incompreensível para o povo, linguagem não popular; i) a consideração dos movimentos sociais como meras correias de transmissão do partido político. O próprio Lênin, no final de sua vida, estava preocupado com as deformações do Estado criado pelos revolucionários e admitia greves contra o burocratismo estatal; j) o desconhecimento do fator étnico-cultural dos povos, populações indígenas, quilombolas etc.[4].

Além desses erros políticos, podemos elencar também o machismo, a ignorância sobre as questões de gênero e ecológicas, e os desafios postos pelas revoluções tecnológica e cibernética. Para que a luta pela terra possa ser tratada como pedagogia de emancipação humana ela não pode recair em nenhum dos erros e equívocos mencionados acima. Mais: deve superá-los, o que é um desafio imenso.

Um olhar atento aos relatos dos sujeitos que lutam pela terra e por território entrevê que a luta pela terra e por território se inicia quando se supera o conformismo e a resignação e se inicia uma etapa de inconformismo, de indignação, de rebeldia e de esperança que, como combustível/alimento, sustenta a marcha da luta por direitos. Frisamos que “esperança não é a última que morre”, pois a esperança é filha da luta, que faz parir a esperança. Se a luta morre, a esperança morre. Logo, não há esperança sem luta e não há luta sem inconformismo, indignação e rebeldia. Nesse sentido afirma Paulo Freire: “Sem um mínimo de esperança não podemos sequer começar o embate mas, sem o embate, a esperança, como necessidade ontológica, se desarvora, se desendereça e se torna desesperança que, às vezes, se alonga em trágico desespero. Daí a precisão de uma educação da esperança” (FREIRE, 2009, p. 11).

De acordo com Paulo Freire, no exercício dialógico de uma pedagogia crítica “a nova experiência de sonho se instaura na medida mesma em que a história não se imobiliza” (FREIRE, 2009, p. 92). Com diálogo, em inúmeras reuniões de preparação de lutas e/ou de avaliação, os Sem Terra, sujeitos do campo, na luta pela terra, os Sem Teto, os Indígenas desterritorializados, os quilombolas e todos Povos e Comunidades Tradicionais na luta pelo território, vivenciam experiências de utopias fundadas na participação, na solidariedade, em relações simétricas e na esperança que se constrói processualmente na luta coletiva por direitos.

Diante do exposto, concluímos que é na mobilização desencadeada pelas lutas coletivas que os sujeitos da luta pela terra e por todos os outros direitos saem do individualismo, da resignação, do pessimismo e, de cabeça erguida, passam a experimentar que podem transgredir o que o Estado e o capital impõem de forma autoritária e brutal. 

Referência

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 16ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.

Idem. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

06/12/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Santana e João, casal exemplar no P.A Paulo Freire, em Arinos, MG! Exemplo de luta pela terra! Vid 3

2 - De Riachinho/MG: Dona Antônia, 1ª professora do sertão do Urucuia, e Sr. Vadu: uma história exemplar

3 - Horta Comunitária e Escola Indígena na Retomada Indígena Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG: BELEZA!

4 - "Não aceitamos despejo nem mortos!" Povo da Ocupação Fábio Alves no Barreiro, em BH/MG. Vídeo 5

5 - Com + de 600 casas, Povo da Ocupação Prof. Fábio Alves, no Barreiro, BH/MG, jamais aceitará despejo

6 - Davi Kopenawa e Yanomami/Watoriki comemoram vitória de Lula e reivindicam demandas urgentes-09/11/22

7 - STF proíbe despejo sem alternativa adequada e prévia - Por frei Gilvander - 10/11/2022

8 - Mística Kamakã Mongoió e música indígena: final da VII Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG

9 - Despejo é violência, destrói casas, história e sonhos Ocupação Novo Horizonte/Ribeirão das Neves/MG

10 - Trajetória apaixonante do Povo Indígena Kamakã Mongoió até Retomada de Território em Brumadinho/MG


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Cf. entrevista coletiva de Marta Harnecker, disponibilizada na internet no link https://www.youtube.com/watch?v=IxG1-W4KK6o

[3] Cf. entrevista coletiva de Marta Harnecker, disponibilizada na internet no link https://www.youtube.com/watch?v=KYpe2nlAFzk

[4] Cf. entrevista coletiva de Marta Harnecker, disponibilizada na internet no link https://www.youtube.com/watch?v=OT8Y8_7V85o

   

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Sem luta pela terra não se pode existir. Por frei Gilvander

Sem luta pela terra não se pode existir. Por frei Gilvander Moreira[1]

Edgar Kanaykõ, A luta pelo território é mãe de todas as lutas, 2017. Cortesia do artista

Em um país latifundiário como o Brasil, com uma das maiores concentrações de propriedade fundiária do mundo, o que causa uma brutal injustiça agrária, que sustenta injustiça social, urbana e ambiental, é necessária a luta pela terra para democratizarmos o acesso à terra, mas esta luta não pode ser feita com uma metodologia anacrônica, precisa estar em sintonia com os desafios e complexidade da atualidade. Não pode ignorar a historicidade de certas concepções. “A burguesia revoluciona as relações de produção e passa a conquistar cada vez mais espaços, a dominar a natureza através do conhecimento metódico, e converte a ciência, que é um conhecimento intelectual, uma potência espiritual, em potência material, por meio da indústria. Nesse quadro, surgem as cidades como local determinante das relações sociais. Em lugar do que ocorria na Idade Média, em que o campo determinava a cidade, a agricultura determinava a indústria, na época moderna é a cidade que passa a determinar as relações no campo e é a indústria que rege a agricultura” (SAVIANI, 2013, p. 82).

Dermeval Saviani tem razão ao pontuar as mudanças, acima referidas, mas consideramos que o poder opressivo não está apenas nas cidades em si e nem na indústria em si, mas no sistema do capital que ancora na cidade e na indústria organizadas de forma capitalista – e atualmente no capital financeiro – a trama opressiva que superexplora a classe trabalhadora e expropria o campesinato.

A luta pela terra para ser pedagogia de emancipação humana precisa aglutinar e construir uma unidade entre muitos aspectos que são imprescindíveis e indissociáveis na construção do novo ser humano e de uma sociedade para além do sistema do capital. Um desses aspectos é a continuidade da luta pela terra e o zelo constante por todos os aspectos da luta. Quando acontece a descontinuidade dos processos de formação de base e de lideranças, deixam-se alguns aspectos atrofiados, vitórias parciais conquistadas na luta pela terra são comprometidas e o que era avanço se torna um retrocesso.

A experiência de luta pela terra, com tudo que a envolve, atesta que a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e muitos outros Movimentos Sociais Camponeses, como sujeitos que, ao lado de muitas outras forças vivas e rebeldes da sociedade, estão tocando adiante algo de transformação social e de emancipação humana, fazendo-se humano e sujeito social construindo História, despertando o que há de melhor no sujeito humano. Nessa esteira, Roseli Caldart defende que “educação como formação humana na perspectiva da emancipação humana e da transformação social é o desenvolvimento da consciência histórica: o saber-se parte de um processo que não começa nem termina com cada pessoa, ou cada grupo humano, ou cada classe social” (CALDART, 2012, p. 93). Para se emancipar humanamente não basta ‘desenvolver a consciência histórica’ reconhecendo-se parte de um processo histórico e cultural, mas exige-se a construção de condições históricas materiais que de fato promovam transformação na raiz maior geradora de ideias mistificantes – ideológicas - que mais encobrem o real do que o revelam. Até porque a experiência se dá em determinadas condições materiais objetivas que a molda, conforme avalia Edward Thompson: “Experiência foi, em última instância, gerada na vida material, foi estruturada em termos de classe, e consequentemente o ser social determinou a consciência social” (THOMPSON, 1981, p. 189).

Não se caminha rumo à emancipação sem se pensar autenticamente, o que é perigoso. Reconhecemos a diferenciação existente entre verdade e conhecimento. “Não existe conhecimento desinteressado” (SAVIANI, 2013, p. 8). Conhecimento exprime relações de poder e dominação. Temos que buscar sempre elucidar os conflitos, confrontos, antagonismos, que muitas vezes são dissimulados nos discursos sobre a luta pela terra. A busca por pedagogia de emancipação humana implica desmascarar muitas pedagogias que, travestidas de pedagogias emancipatórias, são, de fato, pedagogias brutais e violentadoras, conforme denuncia Miguel Arroyo referindo-se às lutas dos movimentos populares camponeses: “As vítimas dessas brutais e persistentes pedagogias ao afirmar-se presentes desocultam as pedagogias de inferiorização, subalternização, que pretenderam destruir seus saberes, valores, memórias, culturas, identidades coletivas” (ARROYO, 2012, p. 13). Pela sua atuação coletiva, sua presença no meio dos camponeses injustiçados e dos movimentos populares ou nas escolas e universidades, a CPT, o MST e outros Movimentos Camponeses apresentam pela sua práxis outras pedagogias. “Reconhecer ou ignorar essas pedagogias de libertação, emancipação passa a ser uma questão político-epistemológica para as teorias pedagógicas” (ARROYO, 2012, p. 15). Isso passará pela desconstrução de processos pedagógicos que, de forma tergiversada, decretam e constituem a classe camponesa como inferior, inexistente, subalternizada. Pensar e fazer e/ou fazer e pensar a luta pela terra para que seja pedagogia de emancipação humana exige considerar “os elementos materiais da formação humana” (ARROYO, 1991, p. 215). A luta pela terra pode ser pensada como pedagogia de emancipação humana, pois pode criar relações sociais que transformem o modo de produção capitalista superando-o e criando as bases para um sistema de produção onde sejam superados dois grandes obstáculos: a propriedade capitalista da terra e a divisão do trabalho que resulta em superexploração dos trabalhadores através da extração permanente e ampliada de mais-valia. “A sociedade contemporânea assenta toda na exploração das amplas massas da classe operária por uma minoria insignificante da população, pertencente às classes dos proprietários agrários e dos capitalistas. Essa sociedade é escravista, pois os operários  “livres”, que trabalham toda a vida para o capital, só têm direito aos meios de subsistência que são necessários para manter os escravos que produzem o lucro, para assegurar e perpetuar a escravidão capitalista” (LÊNIN [1905], 2012, p. 1).

Enfim, a luta pela terra, enquanto pedagogia emancipatória, nos mostra que sem conquistarmos justiça agrária será impossível conquistarmos justiça social, urbana e ambiental e superarmos as brutais desigualdades econômicas, sociais, raciais, de gênero etc. Na injustiça agrária, por meio do aprisionamento da terra, está o tronco que sustenta todas as outras injustiças. Ou seja, enquanto perdurar no Brasil uma estrutura fundiária pautada no latifúndio, as classes camponesa e trabalhadora seguirão sendo superexploradas pelos capitalistas da cidade e do campo. E pior, toda a biodiversidade seguirá sendo devastada. Portanto, lutar pela democratização do acesso à terra se tornou uma necessidade para continuarmos existindo. Sem luta pela terra e sem resistência na terra, não existiremos.                                                          

Referência

ARROYO, Miguel. Outros Sujeitos, Outras Pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2012.

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 4ª Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

LÊNIN, Vladimir Ilitch. O Socialismo e a Religião [1905]. In: site do PCB: Disponível em http://pcb.org.br/fdr/index.php?option=com_content&view=article&id=36:o-socialismo-e-a-religiao&catid=8:biblioteca-comunista

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 11ª edição revista. Campinas, SP: Autores Associados, 2013.

THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

29/11/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Santana e João, casal exemplar no P.A Paulo Freire, em Arinos, MG! Exemplo de luta pela terra! Vid 3

2 - De Riachinho/MG: Dona Antônia, 1ª professora do sertão do Urucuia, e Sr. Vadu: uma história exemplar

3 - Horta Comunitária e Escola Indígena na Retomada Indígena Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG: BELEZA!

4 - "Não aceitamos despejo nem mortos!" Povo da Ocupação Fábio Alves no Barreiro, em BH/MG. Vídeo 5

5 - Com + de 600 casas, Povo da Ocupação Prof. Fábio Alves, no Barreiro, BH/MG, jamais aceitará despejo

6 - Davi Kopenawa e Yanomami/Watoriki comemoram vitória de Lula e reivindicam demandas urgentes-09/11/22

7 - STF proíbe despejo sem alternativa adequada e prévia - Por frei Gilvander - 10/11/2022

8 - Mística Kamakã Mongoió e música indígena: final da VII Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Pedagogia histórico-crítica e luta pela terra para mudar a sociedade. Por frei Gilvander

 Pedagogia histórico-crítica e luta pela terra para mudar a sociedade. Por frei Gilvander Moreira[1]


Nenhum tipo de educação é panaceia para todas as injustiças socioambientais, mas também sem educação emancipatória, naufraga a luta pela terra, por moradia e por todos os outros direitos fundamentais. Segundo Dermeval Saviani “o ser humano não se faz pessoa humana naturalmente; ele não nasce sabendo ser pessoa, vale dizer, ele não nasce sabendo sentir, pensar, avaliar, agir. Para saber pensar e sentir; para saber querer, agir ou avaliar é preciso aprender, o que implica o trabalho educativo” (SAVIANI, 2013, p. 7). Os idealizadores da Escola Nova, por acreditar em um grande poder da educação, pensavam que a revolução social seria realizada pela revolução educacional, mas a história tem demonstrado que via educação formal ainda não aconteceu nenhuma revolução em nenhum lugar do mundo no sentido de superar o capitalismo. Em maio de 1968, com a rebelião da juventude, pensava-se ser possível fazer a revolução social por meio da revolução cultural. A história posterior e as teorias crítico-reprodutivistas buscaram “pôr em evidência a impossibilidade de se fazer uma revolução social pela revolução cultural” (SAVIANI, 2013, p. 58). A pedagogia histórico-crítica busca apresentar alternativas que superem os limites da visão de educação crítico-reprodutivista, expressa na “teoria dos aparelhos ideológicos de estado, de Althusser, e na teoria da reprodução, isto é, a teoria da violência simbólica, de Bourdieu e Passeron, de 1970; e na teoria da escola capitalista, de Baudelot e Establet, de 1971” (SAVIANI, 2013, p. 58). Sendo a educação reprodutivista inadequada, qual tipo de educação poderá não ser reprodutivista, ou seja, não reproduzir a ideologia dominante com a lógica e a estrutura capitalista? A pedagogia histórico-crítica tenta lançar luzes teóricas e práticas sobre essa questão que tem relevância sobre o assunto da nossa pesquisa de doutorado, defendida em 2017 na FAE/UFMG[2]: luta pela terra como pedagogia de emancipação humana.

A questão central da pedagogia é o problema das formas, dos processos, dos métodos; certamente, não considerados em si mesmos, pois as formas só fazem sentido quando viabilizam o domínio de determinados conteúdos” (SAVIANI, 2013, p. 65). Alerta Saviani: “O método é essencial ao processo pedagógico” (SAVIANI, 2013, p. 65). A origem da pedagogia está no escravo que conduzia a criança até o local dos jogos ou ao local onde ela recebia instrução do preceptor para introduzi-la na cultura. “Depois esse escravo passou a ser o próprio educador” (SAVIANI, 2013, p. 65). De forma semelhante, o sem-terra, que é um oprimido e injustiçado, ao se tornar Sem Terra, na luta pela terra, passa a ser um educador protagonista de pedagogia de emancipação humana, pois na luta coletiva pela terra desenvolve-se um processo de construção de um ser humano emancipado e emancipador diante da propriedade privada capitalista da terra e diante da exploração da mais-valia imposta pelo sistema do capital. Algo semelhante acontece também na luta pela moradia adequada e na luta pela conquista de muitos outros direitos humanos fundamentais.

A pedagogia histórico-crítica busca superar várias dicotomias, “frutos do dualismo lógico que domina nossas operações mentais. Pensamos na base do “ou-ou”” (SAVIANI, 2013, p. 73). Tais dualismos a serem superados são, dentre outros: forma e conteúdo, socialização versus produção do saber, saber versus consciência; saber acabado versus saber em processo, saber erudito versus saber popular. Saviani desmistifica tais dicotomias, ponderando sobre saber erudito versus saber popular: “Essa dicotomia entre saber erudito como saber da dominação e saber popular como saber autêntico próprio da libertação é uma dicotomia falsa. Nem o saber erudito é puramente burguês, dominante, nem a cultura popular é puramente popular. A cultura popular incorpora elementos da ideologia e da cultura dominantes que, ao se converterem em senso comum, penetram nas massas” (SAVIANI, 2013, p. 69).

A pedagogia histórico-crítica pode ser um instrumento teórico de qualificação da luta pela terra como emancipação humana, porque “na pedagogia histórico-crítica a questão educacional é sempre referida ao problema do desenvolvimento social e das classes. A vinculação entre interesses populares e educação é explícita. Os defensores da proposta desejam a transformação da sociedade” (SAVIANI, 2013, p. 72). Óbvio que é necessário matizar que tipo de desenvolvimento social se busca: não basta vinculação explícita da educação com os interesses populares e não basta desejar a transformação social, pois esta só ocorre com a transformação das condições materiais objetivas e históricas e não apenas com informação, educação ou conscientização.

A aplicação científica da agronomia à agricultura, dentro do processo de racionalização da agricultura, tem sido uma alavanca para o desenvolvimento do modo de produção capitalista no campo, no caso brasileiro, passando pelo agronegócio à base de monoculturas de soja, cana-de-açúcar, café, eucalipto, capim etc. A luta pela terra atrelada à luta por Reforma Agrária Popular tem traços emancipatórios, porque “batalhar pela implantação de uma proposta de agricultura oposta ao padrão técnico-científico da ‘revolução verde’ hoje é verdadeiramente revolucionário, pois questiona na prática os dogmas da ciência e da pesquisa, e a produção do conhecimento” (LEROY, 2010, p. 296). Vassalo dos dogmas do agronegócio, o capitalista agricultor vê a terra e os trabalhadores camponeses como coisas (mercadorias) a serem exploradas. Sobre isso Karl Marx afirma: “O modo de produção capitalista implica, pois, por condição primeira que os verdadeiros agricultores sejam assalariados, ocupados por um capitalista, o arrendatário, que não vê na agricultura senão um campo especial da exploração do capital, o investimento de seu capital em um ramo particular, e por ele praticado, da produção” (MARX, 1982, p. 354).

Por isso, o caminho transformador e que revitaliza a democracia e o resgate dos direitos trabalhistas, socioambientais e previdenciários surrupiados pelos desgovernos do golpista Temer e do inominável passa por Pedagogia histórico-crítica e pela luta por terra para conquistarmos a transformação da sociedade para além do sistema do capital idolatrado.

Referência

LEROY, Jean Pierre. Territórios do futuro: educação, meio ambiente e ação coletiva. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll/Lamparina Editora, 2010.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 11ª edição revista. Campinas, SP: Autores Associados, 2013.

22/11/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Santana e João, casal exemplar no P.A Paulo Freire, em Arinos, MG! Exemplo de luta pela terra! Vid 3

2 - De Riachinho/MG: Dona Antônia, 1ª professora do sertão do Urucuia, e Sr. Vadu: uma história exemplar

3 - Horta Comunitária e Escola Indígena na Retomada Indígena Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG: BELEZA!

4 - "Não aceitamos despejo nem mortos!" Povo da Ocupação Fábio Alves no Barreiro, em BH/MG. Vídeo 5

5 - Com + de 600 casas, Povo da Ocupação Prof. Fábio Alves, no Barreiro, BH/MG, jamais aceitará despejo

6 - Davi Kopenawa e Yanomami/Watoriki comemoram vitória de Lula e reivindicam demandas urgentes-09/11/22

7 - STF proíbe despejo sem alternativa adequada e prévia - Por frei Gilvander - 10/11/2022


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Hora de lutas republicanas, emancipatórias! Por frei Gilvander

Hora de lutas republicanas, emancipatórias! Por frei Gilvander Moreira[1]

Sônia Bone Guajajara, Coordenadora Executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), durante o Acampamento Terra Livre 2019. Foto: APIB

No contexto de uma sociedade do capital que superexplora de forma crescente o/a trabalhador/a, todos os seres humanos e todos os seres vivos da biodiversidade, sociedade que apregoa a submissão, a resignação e a entrega do ser humano para ser sacrificado no altar do capital idolatrado, a insubmissão, a rebeldia e a resistência dos Sem Terra que lutam pela terra, dos indígenas que lutam pelo resgate de seus territórios, dos Sem Teto que lutam por moradia adequada, dos Negros/as que lutam pela superação do racismo estrutural, das pessoas LGBTQIA+ que lutam pela superação da homofobia, das Mulheres que lutam pelo fim do feminicídio, dos Ecologistas que batalham para frear a devastação ambiental, são traços de pedagogia de emancipação humana. Emancipação pressupõe nunca abandonar os princípios originais que levaram à criação da CPT, do MST, do MTST, do MLB, do Movimento Indígena e de todos os outros Movimentos Sociais, não abandonar o Trabalho de Base que passa pela convivência constante com os camponeses sem-terra, com os sem-teto, com os indígenas e todos/as os/as outros/as injustiçados/as da sociedade, reunir-se, discutir e, juntos, buscar caminhos para o fortalecimento da luta coletiva por direitos que precisa se tornar cada vez mais massiva. Pressupõe também cultivar, manter e fomentar a organização interna envolvendo todos na corresponsabilidade da luta pela terra, por moradia, por territórios etc., despertando, assim, o protagonismo de todos/as. E exige abraçar a construção de outro projeto de sociedade, comprometendo-se com ele, com justiça agrária, justiça socioambiental, justiça urbana, justiça social e geracional, enfim, uma sociedade que supere o capitalismo e que construa outro modo de produção na perspectiva socialista e construa relações socioculturais que sejam de fato justas e equitativas. Enquanto perdurar relações sociais escravocratas no Brasil, não teremos justiça no seu sentido mais profundo, nem respeito à dignidade humana e nem à dignidade de toda a biodiversidade. Enquanto a idolatria do capital e do mercado dominar de forma tirânica a força de trabalho, impondo “teto fiscal” e “responsabilidade fiscal”, não teremos “piso social” e nem “responsabilidade social” para retirar grande parte dos mais de 40% do orçamento do país que segue sendo desviado para banqueiros sob o álibi de se amortizar a injusta dívida pública já paga muitas vezes. Investir pesado em políticas socioambientais exige contrariar o ídolo mercado, seus sacerdotes e arautos que estão sempre de plantão com ameaças.

As questões que a luta pela terra nos colocam não são apenas: “Lutar pela terra e por território!” “Perseverar na luta pela terra e por territórios.” “Abandonar a luta pela terra como uma questão anacrônica e ultrapassada.” Mais do que isso, a questão é: “Como continuar travando a luta pela terra e por territórios?” “Como perseverar na luta pela terra e por territórios?” Além de ser questão política, econômica, sociológica etc., a luta pela terra e por territórios é essencialmente uma questão pedagógica de emancipação humana. A luta pela terra e por territórios travada pela CPT, pelo MST e pelo pujante Movimento Indígena busca ser pedagogia de emancipação humana. Só a luta pela terra e por territórios não garante emancipação humana, mas também sem a luta pela terra e por territórios que conquiste a sua democratização e a socialização não há emancipação humana. Tudo se conquista com luta coletiva dos/as injustiçados/as sendo protagonistas, mas somos cientes de que as mudanças históricas e estruturalmente marcantes não se concretizam sem que se concretizem, antes e durante, as condições materiais históricas de sua realização. Não basta a existência de lideranças revolucionárias e/ou teorias revolucionárias. Também a história da luta pela terra e por territórios demonstra que seu êxito ou fracasso não depende apenas da força ou do vacilo do latifúndio, dos latifundiários ou atualmente do agronegócio, mas depende muito do jeito como está sendo travada tal luta. A necessidade de tornar a luta pela terra e por territórios em luta vitoriosa que de fato resulte em democratização e socialização da terra exige a superação da iníqua estrutura fundiária.

Um processo educacional não garante por si só emancipação, mas sem educação não pode haver emancipação. Mas não pode haver educação emancipatória sem luta pela terra e por territórios. Logo, a emancipação humana e social inclui vários tipos de educação e exclui outros, mas transcende a educação formal e exige permanentemente a luta pela terra e por territórios, pois estas lutas têm meios de transformar as condições materiais históricas que garantem a reprodução do modo de produção capitalista. Como fruto da luta dos movimentos populares e de todas/os as/os militantes de uma educação emancipatória, foi acolhido na Lei de Diretrizes e Base da Educação (LDB) no seu primeiro artigo: “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. Nessa perspectiva ampliada de educação, compreendendo a educação como um processo de formação humana integral, necessariamente conectado às práticas sociais, à História e à cultura, a CPT, o MST, o MTST, o Movimento Indígena etc., com atuação coletiva na luta pela terra e por territórios, têm um peso formativo pelos processos sociais que desencadeiam e se tornam ações permanentes. Assim, a CPT, o MST, o MTST, o MLB e o grande Movimento Indígena são organizações fomentadoras de processos educativos emancipatórios, pois a vida familiar dos Sem Terra, dos Sem Teto, dos parentes indígenas, é ‘chacoalhada’ pelo processo das lutas cotidianas – pequenas, médias e grandes. Também no trabalho coletivo, nas tensões sociais e nos conflitos enfrentados, no estudo e na reflexão e em todas as ações socioculturais desenvolvidas. Referindo-se à atuação do MST, Arroyo, no Prefácio do livro Pedagogia da Movimento Sem Terra, afirma: “Sua presença, suas lutas, sua organização, seus gestos, suas linguagens e imagens são educativas, nos interrogam, chocam e sacodem valores, concepções, imaginários, culturas e estruturas. Constroem novos valores e conhecimentos, nova cultura política. Formam novos sujeitos coletivos” (ARROYO em Prefácio; CALDART, 2012, p. 15).

A luta pela terra e por territórios, protagonizada pela CPT, MST e Movimento Indígena é pedagogia de emancipação humana, também porque o movimento de ocupação de terra para conquista da reforma agrária e a luta pelo resgate de territórios educa para a socialização, para a cooperação, para o exercício da agroecologia, para a solidariedade, para a igualdade de gêneros, para a valorização da comunidade[2] etc., na contramão da cultura arraigada de defesa da propriedade privada capitalista, do individualismo e da hierarquia. 

Enfim, estas lutas urgentes, justas e necessárias são lutas republicanas que nos fazem resgatar o sentido mais profundo da República Federativa do Brasil, pois colocam o público e o bem comum como as pilastras que devem sustentar o edifício da sociedade brasileira que temos que reconstruir, pois foi desmoronada pelo atual desgoverno neofascista.

Referência

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 4ª Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

15/11/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Com + de 600 casas, Povo da Ocupação Prof. Fábio Alves, no Barreiro, BH/MG, jamais aceitará despejo

2 - Bairro consolidado: Ocupação Fábio Alves, Barreiro, BH/MG. Povo não aceitará despejo. REURB-S, JÁ!

3 - Mário Campos/MG precisa ser preservado! "Não aceitamos mineração aqui!" Viva agricultura e as águas!

4 - STF proíbe despejo sem alternativa adequada e prévia - Por frei Gilvander - 10/11/2022

5 - Ato Público em Mariana, MG: Sete anos de crime continuado da Samarco, Vale e BHP. Cadê Justiça?

6 - Levantemo-nos! À luta por direitos, já! - Por frei Gilvander - 05/11/2022



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Esses e outros valores socialistas e, por isso, anticapitalistas, são cultivados no cotidiano da luta pela terra e aparecem  com frequência em muitos documentos do MST, especialmente nos que se referem à educação dos sem-terra. Eis alguns desses documentos: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; Setor de Educação. Estórias de Rosa, [s.d.]; Associação Nacional de Cooperação Agrícola (ANCA). Nossos valores. Para soletrar a liberdade, n. 1, 2000 (Caderno do Educando); Coletivo Nacional de Gênero do MST. Mulher sem terra. Caderno de formação, n. 2, [s.d.].